Com 42 mil habitantes, Espírito Santo do Pinhal é uma pequena cidade do interior paulista situada na Serrda Mantiqueira, a 200 km da capital. Desde 2015, a morna cena artística local começou a se transformar graças à ação do coletivo Cia. da Hebe, uma associação cultural sem fins lucrativos que promove cursos de formação em fotografia e eventos culturais, como projeções, ocupações, encontros com profissionais e lançamento de livros.
Essa história começou quando a diretora teatral Monica Sucupira se juntou à fotógrafa Tika Tiritilli para fundar o coletivo, cujo nome é uma homenagem a Hebe Sucupira, mãe de Monica, ilustre na cidade por sua produção artística nas áreas da poesia e da pintura. “Uma mulher que viveu mais de noventa anos e que sempre teve atitudes, pensamentos, ideias ousadas e criativas que fugiam ao padrão da sua geração. Ela inspirava coragem em uma sociedade carente de liberdade. Mais que uma homenagem, é uma inspiração”, explica Monica.
Em 2016, o fotógrafo e publicitário João Barim se juntou às duas fundadoras na coordenação do projeto. “Quando ingressei no Cia. da Hebe, em 2016, passei a deixar um pouco de lado a linguagem publicitária para abrir espaço à fotografia autoral, num movimento intenso de expansão e de desconstrução do olhar”, ressalta Barim.
Apesar de a maioria dos integrantes do coletivo ser de mulheres, não há restrições para participação. “O mundo inteiro cabe aqui. Essas são as palavras que nos denominam. O Cia. da Hebe abriga pessoas de todos os tipos, sem nenhuma restrição de gênero, origem, ideias, conhecimento, formação ou idade. O bonito é que o aprendizado vem desse coletivo formado da diferença, que não fala a mesma língua”, diz Monica.
Na base dos encontros
Anualmente, o Cia. da Hebe realiza os Encontros de Criação Fotográfica, que são 24 ao longo do ano. Durante o processo, os participantes partem de reflexões coletivas para depois aprofundar os trabalhos individuais. Ao final, retornam com as produções para debater e finalizar. João Barim ensina a técnica enquanto Monica Sucupira e Tika Tiritilli trabalham o processo criativo. Os três coordenadores também orientam os participantes individualmente para ajudá-los a desenvolver os projetos e a transformar as ideias em imagens.
Depois de todos os encontros, o resultado é uma exposição coletiva, realizada em um casarão centenário da família Sucupira, no centro da cidade. Já foram realizadas três edições do evento: 175 Ocupação Fotográfica, em 2017; Deslimites, em 2018; e TRANSAções, em 2019, programada para ficar em cartaz até o dia 10 de janeiro de 2020. Os integrantes do coletivo promovem visitas guiadas com estudantes e conversas com o público em geral acerca das obras expostas e da proposta estética. Além de envolver a população local, as exposições também atraem turistas, que se surpreendem com uma mostra de arte contemporânea em uma cidade do interior voltada ao ecoturismo.
A proposta dos encontros é despertar o impulso criativo nos participantes. Durante o processo, eles percebem que todos os seres humanos são dotados da capacidade de se exprimir artisticamente. Por isso, não se trata de um coletivo de fotógrafos já formados, mas em formação. “Nossa motivação está sempre no ‘não artista’, o participante que não sabe nada, o curioso ou ainda o que sempre teve vontade de ser fotógrafo. Ao passarem pelos encontros, eles se motivam, adquirem formação e informação, não somente na área da fotografia, mas nas artes de maneira geral. Acima de tudo, experimentam um pouco sobre o processo artístico em fotografia por meio da imersão, da convivência e do diálogo com os colegas”, relata Monica.
Com foco nos autorretratos
O movimento de descoberta pessoal por intermédio da fotografia acaba gerando muitas produções no campo dos autorretratos. É o caso da série (Re)flexões de Gênero, produzida pelos irmãos João e Tamara Bardim, que explora a semelhança entre os dois para criar uma confusão visual e um questionamento do espectador. O trabalho esteve entre os finalistas da Convocatória Portfólio em Foco 2018, realizada pelo Festival Paraty em Foco.
Na edição de 2019 do festival, o Cia. da Hebe se destacou na chamada Selfie em Foco, voltada aos autorretratos. Sete participantes do coletivo tiveram imagens pré-selecionadas e duas participaram da exposição, Maria José Benassi e Tika Tirikilli. A variedade de abordagens dentro de um mesmo gênero demonstra que o grupo de Espírito Santo do Pinhal conseguiu criar um espaço em que os participantes produzem de maneira coletiva dando vazão a visões individuais.
Mesmo os coordenadores do coletivo Cia. da Hebe estão em constante aprendizado, como testemunha Tika Tiritilli. “Aprendo diariamente a conviver, a falar a mesma língua, a pensar no outro, a pensar junto, a exercitar a criação para despertar um outro olhar nos participantes, tanto para consigo mesmo quanto para o mundo. O coletivo é sempre um desafio e uma conquista, minúsculo e gigante, não é trabalho, mas pensamento de vida”, avalia a fotógrafa.
Transformação de vidas
O Cia. da Hebe vem transformando vidas, conforme é possível perceber pelo relato de alguns participantes. Rita Maia, de 57 anos, entrou para o coletivo em 2017 e sequer sabia fotografar. Com o tempo, além de fazer fotos, passou a realizar colagens e intervenções com o uso de panos, linhas, impressões, xerox, palavras e desenhos.
“O coletivo me encorajou a desenvolver uma maneira de trabalhar a fotocolagem. Aprendi que fotografia não é somente olhar e apertar o botãozinho. Tem tantas coisas envolvidas, o contato com o outro, o ângulo, a iluminação. Não sabia nada disso. Outro dia fiquei muito feliz quando pude realizar um exercício de cor, prestando atenção no ônibus circular que me levava para a casa”, conta Rita.
Leticia Lunga, de 22 anos, entrou no coletivo em 2018. Ela, que gostava de fotografar natureza e pássaros, diz que a experiência no grupo mudou seu estilo e abriu sua percepção para as pequenas coisas do dia a dia. “Descobri muito nos autorretratos, descobri a fotografia e a mim mesma. É bonito quando você mostra um trabalho pessoal para o grupo e os demais participantes estão interessados em ouvir e compartilhar, pensar, repensar, ver de novo… é quando realmente acredito que a arte transforma”, afirma.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 279