Como compor o retrato de uma cidade? Como contar sua história? Em vez de fotografar suas ruas e edifícios, uma abordagem mais interessante pode ser a de retratar seus moradores, pessoas únicas, que têm suas histórias, profissões e dons particulares e colaboram, em seu conjunto, para construir uma memória coletiva rica e heterogênea.
Tendo essa proposta em mente, André Motta passou alguns meses, entre 2022 e 2023, retratando habitantes da pequena cidade de Passa Quatro, no sul de Minas Gerais. O fundo neutro escolhido serve para realçar a particularidade de cada feição. Os retratados posavam usando suas vestimentas e utensílios de trabalho. O resultado desse instigante projeto é um conjunto de mais de 200 retratos, intitulado “Gente de Passa Quatro”.
Com uma seleção de oito retratos da série, André Motta é um dos finalistas do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024 na categoria Ensaio. Ele conta um pouco de sua trajetória como fotógrafos e da concepção da série na entrevista abaixo. Confira.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Tenho 59 anos, vivo parte do tempo em Passa Quatro, no Sul de Minas, e parte no Rio de Janeiro. Mais ou menos 50% do tempo em cada lugar !
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Vai parecer piegas e bastante comum, mas comecei a fotografar em 1988 quando estava prestes a ser pai e queria registrar o crescimento de Andréa, minha filha. Foi um início com muita leitura e visão do trabalho de grandes fotógrafos, mas com pouco reflexo nas “produções infantis”. Certo dia, lendo um exemplar da revista Ciência Hoje, vi um artigo científico sobre a Chapada Diamantina e decidi que queria fotografar aquilo. Poucos dias depois, um exemplar da revista Iris Foto trouxe um trabalho do Zé de Boni, fotógrafo paulista, também sobre a Chapada Diamantina. Era o Universo me chamando ! Fui e me identifiquei com fotografia de paisagens.
Daí em diante fui fotografando e evoluindo, sempre estudando e vendo o trabalho de gente grande. Até que um dia fui convidado, na empresa em que trabalhava, a cuidar do Banco de Imagens. Queriam alguém que conhecesse fotografia, mas com conhecimentos de TI pra gerir o software e o acervo. Eu trabalhava com TI há mais de 25 anos e aceitei ! Comecei a fazer fotografia corporativa e a me identificar com tubos, válvulas, compressores, reatores, grandes máquinas, grandes obras.
E um dia me pediram pra fazer um retrato, formal, de um diretor, pois o fotógrafo contratado não poderia comparecer. Fiz, ficou bom, e me despertou o gosto pelos retratos, pelo lidar com o outro, pelo ato de conversar e chamar pra tomar um café e conhecer o retratado, seus gostos, seu humor. Fotografei dezenas de executivos naquela empresa, com escritórios espalhados pelo Brasil. E o gosto pelo retrato ficou consolidado.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
O trabalho finalista foi realizado durante parte de 2022 e massivamente em 2023, em Passa Quatro, pacata cidade de aproximadamente 16.000 habitantes no Sul de Minas, onde minha família tem suas origens e onde moro parte do tempo. Um amigo meu toca sousafone, um instrumento que parece uma tuba, na banda filarmônica da cidade. Pensei em fazer um retrato dele paramentado, em estúdio, com um fundo neutro, usando uma tocha com softbox, uma luz bonita.
A imagem ficou muito bonita. E pensei: porque não fotografar pessoas diferentes ? E foram mais de 200 pessoas ! O professor, a poetisa, o varredor de ruas, a cozinheira, a doceira, a engenheira, o baixista, o guitarrista, o oleiro, a costureira, ah, tanta gente com histórias humanas fascinantes ! E a proposta, percebida logo no início do trabalho, foi de fazer de Gente de Passa Quatro, um projeto sobre a memória da cidade. Se refletirmos um pouco, talvez filosoficamente, perceberemos que a construção da memória das pessoas é um processo complexo que transcende a mera lembrança individual. Ela é um reflexo da interconexão de vidas, da influência do ambiente local e do impacto do tempo sobre as relações humanas.
O tempo, com sua passagem inexorável, desempenha um papel crucial na construção da memória das cidades. À medida que as estações passam e as décadas se acumulam, os eventos e as pessoas que fizeram parte da história local são gradualmente moldados pela nostalgia e pelo esquecimento. O que é lembrado e o que é esquecido depende do contexto e do significado que atribuímos a esses elementos do passado. Nesse contexto, os retratos das pessoas de uma cidade desempenham um papel crucial na construção da memória.
Os retratos capturam momentos, histórias e experiências que enriquecem a narrativa da cidade ao longo do tempo. Cada pessoa na cidade tem sua própria história. E os retratos capturam essas histórias pessoais, que, em conjunto, ajudam a construir a história coletiva da cidade. Se pensarmos nessas fotografias como um legado para o futuro, os retratos mostram as mudanças no cotidiano e no estilo de vida, além de poder evocar emoções e lembranças pessoais. As pessoas se relacionam mais facilmente com imagens de outras pessoas, o que ajuda a construir uma conexão emocional entre o espectador e a cidade.
Os retratos também desempenham um papel importante na preservação da história de uma cidade. As imagens podem ser usadas no futuro para contar a história de Passa Quatro de maneira mais rica e envolvente. E, mais do que uma amostra temporal da população num determinado momento, a ideia de captar tais imagens poderia ser estendida a qualquer cidade do mundo e teríamos uma diversidade semelhante e igualmente fantástica. Afinal, essas são as pessoas que fazem histórias, as pessoas que somos, as pessoas que conhecemos, as pessoas que amamos.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Estou trabalhando na montagem e diagramação do livro que espero materializar com as imagens do Gente de Passa Quatro.
Tenho duas filhas que moram no exterior, em continentes diferentes, em cidades muito cosmopolitas, com gente de todo o planeta. Visitando-as no ano passado, pensei: ” – Por que não esticar um fundo cinza aqui na praça e fotografar as pessoas e fazer um People of the World ? ”
Pode parecer ambicioso, mas… por que não ?