Uma das primeiras imagens fotográficas da história mostra o Boulevard du Temple, em Paris. Feita em 1838 por Louis Daguerre, causou enorme espanto quando apresentada ao público no ano seguinte, durante o anúncio oficial do invento da fotografia, pois pela primeira vez reproduzia uma paisagem urbana captada com perfeição, nos mínimos detalhes. Desde essa época, o segmento que retrata o espaço das cidades, com ou sem a presença humana, se entrelaça com outras áreas da fotografia, como documental, cenas de rua, arquitetura e viagem. Mais recentemente tem sido explorado no campo da arte, como pode ser comprovado pelo trabalho de quatro fotógrafos renomados: Claudio Edinger, Claudia Jaguaribe, Tuca Vieira e André Lichtenberg.
No lado documental, ao longo do século 19, as cidades foram registradas por grandes fotógrafos mundo afora. No Brasil, Marc Ferrez, no Rio de Janeiro (RJ), e Militão Augusto de Azevedo, em São Paulo (SP), são nomes de destaque, que deixaram um valioso acervo histórico. Hoje, o mestre Cristiano Mascaro é uma espécie de herdeiro desses pioneiros, preferindo o P&B para retratar as cidades e as pessoas que as habitam (veja mais na pág. 30).
Também no final do século 19 e no começo do 20, a paisagem urbana deu origem a uma febre: o cartão-postal. Em poucos anos, a maioria das grandes cidades ao redor do mundo estava completamente mapeada, fotografada de diversos ângulos, por uma enorme variedade de profissionais. Esse tipo de lembrança de viagem saiu de moda há bastante tempo, mas pessoas continuam publicando seus “cartões-postais” nas redes sociais, especialmente no Instagram.
Para mostrar o ponto de vista de arte, veja a seguir os trabalhos de Edinger, Jaguaribe, Vieira e Lichtenberg, todos com obras consolidadas que podem inspirar novos fotógrafos.
Uma aposta no foco seletivo
A busca pela identidade, pelo reconhecimento e pela representação de um lugar próprio é uma das principais motivações de Claudio Edinger, 68 anos. Em seu eclético trabalho, a primeira série a abordar a paisagem urbana foi Cityscapes, de 1994. Edinger morava em Nova York e dava aulas sobre projeto fotográfico no International Center of Photography (ICP). “Depois de dois cursos seguidos, notei que os projetos dos alunos não avançavam como eu esperava. Resolvi, no terceiro ano, 1994, desenvolver um projeto também para ver se era possível ou não. Sabia que meus dias na cidade estavam contados e há tempos pensava em fotografar Nova York, mas não sabia como”, recorda.
Depois de realizar alguns testes com uma câmera Hasselblad montada em um tripé, Edinger chegou a um resultado satisfatório. Sua fórmula permitia obter a paisagem urbana no foco, enquadrada previamente, e os transeuntes fora de foco, captados de maneira espontânea em inusitadas interações com a cidade. As imagens da série, reunidas em um livro publicado em 2001, continham o embrião de trabalhos futuros, também articulados a partir da relação entre o focado e o desfocado.
De volta ao Brasil em 1996, Edinger trouxe consigo sete livros prontos para publicar e conheceu Alexandre Dória, da Editora DBA, que topou imprimir todos. Ao longo do tempo em que preparava os livros, o fotógrafo resolveu redescobrir sua cidade natal, o Rio de Janeiro. “Havia acabado de comprar uma câmera de grande formato para chapas de 4 x 5 polegadas. Esse tipo de equipamento, por meio do movimento de báscula, permite fazer foco seletivo óptico. Comecei a fotografar o Rio com aquela câmera maravilhosa, vagarosa, deliberada. O foco seletivo cria uma intimidade com a imagem que, para mim, está mais próxima de como de fato enxergamos na vida real”, avalia.
Edinger passou três anos fotografando o Rio. Quando terminou a série, não se sentia satisfeito. Passou então a fotografar São Paulo, para onde se mudou com a família quando tinha dois anos e onde vive desde que retornou ao Brasil. O projeto desdobrou-se depois para o interior da Bahia e deu origem a ensaios comparativos realizados em Paris e Veneza. Imagens acumuladas nesse longo percurso foram reunidas no livro O Paradoxo do Olhar, publicado pelo Estúdio Madalena em 2015.
O desdobramento mais recente do uso do foco seletivo para fotografar a paisagem urbana veio com a série Machina Mundi, publicada em livro da editora Bazar do Tempo em 2017 e ainda em andamento. Edinger abandonou o ponto de vista da calçada para adotar a visão aérea. As primeiras imagens foram feitas de helicóptero e, mais recentemente, o fotógrafo usa um drone. Para essa nova série, ele teve de abrir mão da câmera de grande formato, impossível de ser usada quando se fotografa de um helicóptero. Hoje o efeito de foco seletivo é obtido na pós-produção. As imagens resultantes parecem realizadas por um olhar “divino” que paira sobre as cidades.
Um olhar para as paisagens subjetivas
Formada em História da Arte e Artes Visuais pela Universidade de Boston, nos Estados Unidos, Claudia Jaguaribe, 65 anos, se interessou pela fotografia por se tratar de uma mídia que combina a dimensão tecnológica com a artística. Na época em que estudava, começaram a surgir as grandes ampliações em cor e o trabalho do americano Joel Meyerowitz foi sua principal inspiração. “Ele levou a fotografia urbana e de paisagem a um novo patamar artístico”, aponta.
Jaguaribe desenvolve um trabalho voltado para a paisagem urbana e o meio ambiente, no qual a representação do real serve apenas de ponto de partida para uma abordagem subjetiva que questiona a própria imagem fotográfica. Ela sempre tem como horizonte o resultado final do trabalho, como será exposto ou como irá circular. Por isso, sua produção costuma ganhar o formato de livro, buscando uma integração entre fotografia e projeto gráfico, e de objetos e instalações.
Vivendo entre São Paulo e Rio de Janeiro, Jaguaribe já retratou as duas cidades em suas obras. A série Entre Morros foi realizada em 2010 e publicada em livro em 2012 pela Editora CosacNaify. Explora o formato panorâmico para dar conta da caótica paisagem carioca, “espremida” entre o mar e as montanhas. O trabalho nasceu da participação no Prêmio Pictet de Fotografia, que teve “Crescimento” como tema naquela edição. Muitas imagens foram captadas a partir de uma perspectiva aérea e dos lugares escolhidos tendo em vista a representação da verticalidade. “Resolvi abordar a questão do crescimento vertical do Rio. Decidi fotografar e juntar perspectivas próximas e longínquas. Assim, tinha uma visão ao mesmo tempo real e impossível, porque são planos focais distintos colados em uma mesma imagem”, conta.
Já para representar a capital paulista, Jaguaribe decidiu fazer as imagens do alto, buscando dar uma dimensão do gigantismo da metrópole. As fotos foram depois compostas em montagens e ganharam a forma final no livro Sobre São Paulo, publicado em 2013 pelo Estúdio Madalena.
Um dos trabalhos mais recentes dela é o livro Beijing Overshoot, publicado pela editora francesa Bessard em 2017, com edição numerada e assinada de 500 exemplares. A obra aborda a paisagem da megalópole chinesa por meio da sobreposição de imagens, trazendo muitos planos e possibilidades de leitura da vida chinesa. Uma das marcas desse trabalho é a mistura de imagens do presente e do passado, do espaço construído e do meio ambiente.
Do fotojornalismo para a paisagem das cidades
Tuca Vieira, 46 anos, começou seu percurso profissional como fotojornalista do jornal Folha de S.Paulo, de 2002 a 2009. O cotidiano de repórter fotográfico deu a ele versatilidade para resolver qualquer tipo de situação, enfrentando as mais variadas condições de luz. Também permitiu que conhecesse todas as regiões de São Paulo, principalmente a periferia.
Em 2004, em uma pauta especial sobre os 450 anos da capital paulista, ele foi escalado para abordar o tema da habitação. Sua colega de redação, Marlene Bergamo, deu a dica de um bom lugar para expressar o contraste entre riqueza e pobreza e ele se deslocou de helicóptero até a favela de Paraisópolis, na zona sul da cidade. Fez uma foto que mostra os barracos da favela colados em um condomínio de alto luxo situado no bairro vizinho, Morumbi, no qual cada morador tem sua varanda com piscina própria – uma imagem que correu o mundo e foi incluída na mostra Cidades Globais, realizada na Tate Modern, em Londres, ao lado de artistas de renome internacional, como o alemão Andreas Gursky.
Ao deixar o jornal, Vieira buscou a inserção de seu trabalho no mercado de arte e passou a produzir séries autorais com o foco em paisagens urbanas. Em 2014, retornou às ruas da capital paulista com uma abordagem e um olhar bem distintos da época do fotojornalismo. Criou a série Atlas Fotográfico a partir de uma proposta conceitual: abrindo um guia de ruas da cidade, dividiu-a em 203 porções, sendo que cada porção era representada pelo mapa presente em uma dupla de página. Dentro do perímetro de cada porção da cidade, ele fez uma foto com uma câmera de grande formato e de chapas coloridas de 4 x 5 polegadas.
Já a série V. se Encontra na Posição da Seta, de 2013, representa outra forma de cartografia do espaço urbano. Vieira fotografou a fachada posterior do Edifício Copan, prédio icônico no centro de São Paulo projetado por Oscar Niemeyer, com 38 andares e centenas de apartamentos. Usando uma DSLR digital com teleobjetiva, fez 105 imagens da fachada. Depois, juntou todas elas em uma única fotografia gigante. Das imagens individuais, Vieira retirou detalhes que permitem entrever microcenas. O trabalho foi exposto na Galeria Mario Schemberg, da Funarte, em São Paulo, contrapondo a imagem enorme em uma parede com um mosaico de detalhes em outra.
A partir de 2018, Tuca Vieira iniciou o projeto Hipercidades, ainda em andamento. A proposta é fotografar as 30 maiores cidades do mundo, todas com mais de 10 milhões de habitantes. Ele já passou por 17 delas e publicou parte do material no jornal Folha de S.Paulo. Programado para terminar em 2022, o projeto deverá sofrer algum atraso por conta da pandemia da covid-19.
Em 2019, ele visitou 14 grandes cidades, a maioria na Ásia, ao longo de cinco meses, começando e terminando em Istambul, na Turquia. Passou por Hong Kong, Shenzen, Guangzhou, Xangai, Chongqing, Tianjin e Pequim, na China; Bancoc, na Tailândia; Jacarta, na Indonésia; Manila, nas Filipinas; Tóquio e Osaka, no Japão; e Moscou, na Rússia. Juntas, essas megacidades somam 223 milhões de habitantes.
Inspiração na infância
Com graduação em Letras e ainda pouco conhecido no Brasil, André Lichtenberg, 56 anos, nasceu em Porto Alegre (RS), e tem uma carreira de sucesso como fotógrafo no Reino Unido, onde vive desde 1986. Após formar-se em Engenharia Civil, viajou a lazer para Londres, mas acabou ficando por lá, onde obteve o diploma de Ciências Fotográficas pela Universidade de Westminster, em 1994.
Lichtenberg trabalhou por dez anos como fotógrafo comercial na área de turismo e editoriais. Em 2008, com a crise financeira mundial, começou a investir em projetos autorais e, aos poucos, foi ganhando espaço no circuito artístico. A série que marcou essa transição foi Vertigo, nascida de desenhos de infância do fotógrafo.
As imagens foram realizadas desde o topo do edifício One Canada Square, à época o mais alto de Londres, com 235 metros. Capturadas com lente grande angular para acentuar a perspectiva vertical, provocam uma sensação de vertigem no espectador. “Essa área é o coração do mercado financeiro mundial que atua na City londrina. É pequena, considerada privada, e fotografia de rua não é permitido ali. Daí minha decisão de subir ao teto e registrar de cima, criando uma relação entre o poder e seu distanciamento em relação às pessoas normais”, reflete.
Outra série de paisagens urbanas que nasceu a partir de uma inspiração nos desenhos de infância é Within, iniciada em 2012. Também é composta de fotos feitas do alto de arranha-céus, mas com o ponto de vista voltado ao horizonte. Lichtenberg lembra de “momentos mágicos” em que faltava energia elétrica em sua casa e ele observava a cidade no escuro. Por isso as imagens de Within são concebidas em negativo, com o céu negro, carregado, ocupando grande parte da imagem, e o skyline em tons claros.
A série tem imagens de Paris, Nova York, Londres, São Paulo e Porto Alegre. Cada uma delas é o resultado da fusão de diversas fotos e busca abarcar grandes extensões, mostrando pistas sobre a evolução da cidade, o traçado das ruas e o contraste de prédios históricos com a arquitetura moderna.
Em 2010, Lichtenberg produziu outra série baseada em traços autobiográficos: Licht, composta de fotos feitas com longa exposição, em noites de lua cheia. Ele se inseria nas cenas ao caminhar carregando uma lanterna enquanto a imagem era captada, sendo representado por meio do rastro de luz deixado por sua passagem. “Licht explora o tema da identidade e da história da minha família de uma maneira poética. O horizonte nas imagem aponta para o sul da Europa e para a América de Sul, buscando um significado para a jornada dos meus ancestrais, que viajaram da Europa para o Brasil, e para minha aventura, de brasileiro que veio viver na Inglaterra”, explica.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 289