No romance Grandes Esperanças, de Charles Dickens, há uma passagem peculiar acerca da ruína, em sua dimensão física e existencial, resultante de uma expectativa que, abruptamente, se extinguiu.
Ao ser introduzido, ainda menino, na mansão Satis, propriedade da rica e excêntrica Srta. Havisham, o herói da história, Pip, traduz ao leitor as impressões advindas de sua primeira audiência com esta mulher, que em idade avançada se conserva, há muitos anos, vestida de noiva, da forma como se encontrava no momento antecedente à cerimônia de seu casamento: “Estava vestida com materiais ricos – cetim, rendas, sedas – todos brancos. Os sapatos eram brancos. E usava um véu branco e comprido que pendia de seus cabelos, e flores nupciais. Mas o cabelo era branco” (DICKENS, 2010, p. 79).
O preparo para o ato solene, no entanto, não havia sido concluído – “(…) calçava apenas um pé de sapato. (…) O véu não estava de todo arrumado, o relógio e a corrente não haviam sido colocados, e a renda para o busto repousava com os berloques, (…) todos amontoados em confusão nas proximidades do espelho” (DICKENS, 2010, p. 79-80) – quando, no horário de vinte para as nove, uma carta do homem com quem firmara o compromisso matrimonial a surpreendeu, portando a notícia da decisão de romper a futura união. A Srta. Havisham que, desde então, decidiu nunca mais ver a luz do sol, conservou-se exatamente da maneira como estava na ocasião, mantendo intacta a disposição dos objetos, que integrariam o seu figurino de noiva, e o salão decorado, onde seria servido o banquete nupcial, além de parar todos os relógios da mansão na derradeira hora.
Há a tentativa improfícua de paralisar o tempo dos relógios, na forma como a vida da mansão e as expectativas de alma da Srta. Havisham se encontravam, instantes antes de receber a notícia que desencadeou o naufrágio de sua existência. Ela tem como contraponto a inevitável ação do tempo, que ignora as aspirações de um espírito em conflito ao desejar estender ao limite máximo a duração de um projeto tornado infrutífero e converte os luxuosos ornamentos de uma casa próspera em ruínas; a mesa de uma festa em preparação em poeira e mofo; o figurino nupcial em mortalha:
“Desci para olhar para o pé no qual o sapato se encontrava ausente, e vi, nele, que a meia outrora branca, agora amarela, estava rasgada de tanto caminhar. Sem esta suspensão das coisas, esta imobilidade de todos aqueles objetos pálidos e decadentes, nem mesmo o vestido de noiva, encardido, envolto naquela forma derrocada, teria se assemelhado tanto a uma roupa funerária, e nem aquele véu comprido, tanto a uma mortalha” (DICKENS, p. 83).
A alegoria proposta por Dickens em Grandes esperanças, figurada no dilema da Srta. Havisham, é um convite para refletir a respeito do luto sobre algo que ruiu antes de a vir ser e prende o “eu”, ad infinitum, sob os seus escombros. Em situações análogas podem ser vislumbradas todas as expectativas voltadas para um sonho, um projeto, um objetivo de vida sob o qual se construiu um alicerce, levantaram-se as paredes, mas o edifício tornou-se ruína antes de ser habitado, condição essa que amalgama uma variedade infinita de experiências humanas: laços afetivos que, bruscamente foram cortados; o filho planejado que não foi concebido ou, tendo sido gerado, não veio à luz e a mãe seguirá, por toda a existência, velando a vida que expirou antes de nascer…
A reflexão que se apresenta no portfólio “Ruínas do inacabado” propõe-se, por meio da imagem inconclusa, rasurada ou deteriorada antes de atingir a plenitude de sua execução. Tais elementos inerentes ao eu se estendem à essência que nos constitui na dialética que há entre iniciar uma construção e desistir de concluí-la; mudar a perspectiva da execução ou abandonar para sempre a estrutura que começou a ser levantada. Onde ficam, neste contexto, os restos dos quais somos feitos e perdemos ou rejeitamos?
Há o plano simbólico, onde se instauram as emoções ou os afetos. Mas também existe a dimensão material, na qual se inscrevem as experiências físicas, concretas… Todavia, os respectivos itinerários se cruzam, confrontam-se incessantemente e, para tanto, podemos nos questionar o que ainda nos prende ou se impôs para nos libertar das ruínas de tudo o que ficou inconcluso e não veio a ser?
Na perspectiva da arte e, aqui, pensando no próprio processo de produção da imagem fotográfica, quantos rascunhos, esboços, filmes, cópias digitais, foram descartados antes de se chegar à obra final? Onde jazem esses escombros descartados? Sobre esse material fotográfico rejeitado, cuja edição não foi finalizada por se distanciar, em determinados momentos, do conceito pretendido e, em outras situações, sucumbir a erros de captura ou revelação, aplicaram-se técnicas de fotografia híbrida e dupla exposição, que objetivam criar uma atmosfera de deterioração sobre as versões de um mesmo eu.
Podemos considerar a inconclusão ou as ruínas de algo que não chegou a ser terminado como uma espécie de totalidade, inerente ao “eu” e o mundo material que o (des)ampara? Essa é a indagação que subjaz ao portfólio “Ruínas do inacabado” para a qual as tentativas precárias de (não) se atingir uma resposta configuram disrupturas que vão se inscrevendo sobre minhas próprias versões inconclusas.