“Enquanto atravesso o quintal, olho para os muros da casa, e pela primeira vez percebo como são baixos para tudo o que está fora e altos para nós que estamos aqui dentro. O Sol, que ainda brilha forte, já esquentava o chão quando recebemos a notícia de que, a partir de amanhã, o comércio permanecerá fechado por alguns dias. Assim como outros, me pergunto o que é importante estocar e se o dinheiro vai dar. Por fim, me invade a ideia de transformar o canteiro em uma horta.
No supermercado, sinto que é véspera de ano-novo, mas, na verdade, é começo de um mês que vai se estender por alguns anos; um mês em que as notícias, as prescrições, os alertas e alguns hábitos serão repetidos até à exaustão como um GIF que viraliza da timeline das redes sociais para o que resta de vida fora delas. Com medo, vamos nos esforçar para consolidar fronteiras — este é o meu ar, este é o seu ar —, mas março de 2020 vai atravessar oceanos e fazer mundos parecerem um só.”
“Brazil, 1.138 de março de 2020” é um documentário fotográfico em que apresento algumas percepções sobre o período da pandemia.
O título remete à quantidade de dias corridos contados desde 24 de março de 2020, data das primeiras recomendações para quarentena no país, até 05 de maio de 2023, quando a OMS deixou de classificar o surto de Covid-19 como pandemia.
Para compor esta série, busquei signos capazes de contextualizar o momento. Alguns deles são muros, grades, máscaras e outros tipos de barreiras que demarcavam as fronteiras do que era dentro e do que era fora; daquilo que pertence a um e daquilo que pertence ao outro; do prescrito e do contraindicado. Também estão presentes as antenas, que possibilitavam alguma conexão ao transmitir informações. A repetição de objetos, paisagens e ações, remete às manchetes, preocupações e protocolos que naquele momento pareciam déjà-vus. As vidas que desapareciam são representadas por espaços vazios, silhuetas desprovidas de rostos e corpos parcialmente apagados pela longa exposição do dispositivo fotográfico.
Assim, por meio desta série, procuro evocar sentimentos de angústia, tensão e desamparo que foram presenças tão marcantes ao longo destes 1.138 dias.