Em quase seis décadas de dedicação à fotografia e às bandeiras do movimento negro, o mineiro-carioca Januário Garcia, 78 anos, já fez um pouco de tudo: começou com fotos de colegas paraquedistas quando esteve no Exército, passou pelo fotojornalismo, pela fotografia publicitária e produziu capas de discos memoráreis de grandes nomes da Música Popular Brasileira.
Ao longo dessa trajetória, em paralelo ao trabalho remunerado, desenvolveu a mais ampla documentação da diáspora africana no Brasil em décadas recentes, tanto em imagens de rua registradas em morros e subúrbios cariocas quanto em projetos específicos. Também retratou personalidades, reuniões e manifestações do movimento negro.
A atração pela fotografia se revelou durante a infância, quando ainda morava em Belo Horizonte (MG), sua cidade natal. Januário Garcia perdeu o pai aos 5 anos de idade; a mãe, viúva e analfabeta, criou os quatro filhos trabalhando como empregada doméstica. Ela pagou uma professora particular para preparar o garoto ainda antes de ele ir para a escola. “Quando fui estudar formalmente, com seis para sete anos, já sabia ler e escrever, conhecia a tabuada de 1 a 9 e as quatro operações matemáticas”, conta Garcia.
Ao ler uma edição da revista Tico-Tico, aprendeu como construir um projetor caseiro, usando o vidro de uma lâmpada incandescente cheio de água como uma objetiva improvisada. “O cinema da cidade tinha sessão de quinta a domingo. Como muitas películas arrebentavam durante a exibição, o operador cortava pedaços do filme para emendar e continuar a projeção. De manhã, eu passava recolhendo esses pedaços descartados na noite anterior. Fazia sessões de projeção para os amigos com esses fotogramas e ia criando minhas próprias histórias. Minha paixão pela fotografia começou aí”, recorda Garcia.
A perda da mãe quando tinha 9 anos foi um baque muito grande para o pequeno Januário Garcia e seus irmãos. Dois anos depois, ele decidiu sair de casa. Um belo dia, entrou em um trem sem saber para onde ia. Embarcou escondido em um vagão de transporte de gado. Quando percebeu que o trem havia chegado a um destino no qual muitas pessoas desembarcavam, saltou e seguiu o fluxo. Ao chegar na praça externa da grande estação, descobriu que estava no Rio de Janeiro. Havia desembarcado na Central do Brasil aos 11 anos de idade.
Paraquedas e fotografia
Januário Garcia viveu nas ruas do Rio até os 16 anos, trabalhando como engraxate e ajudando a transportar carrinhos de compra de senhoras que faziam a feira. Conta que sempre teve a convicção de que aquilo era algo temporário, graças à formação básica que a mãe havia garantido. Recolhido compulsoriamente das ruas, foi enviado para um reformatório administrado pelo Serviço de Amparo ao Menor.
Os alunos do reformatório receberam um dia a visita de militares que foram convidá-los para ingressar no Exército. Garcia se apresentou, passou em todos os exames, mas não pôde ser admitido de imediato, pois não tinha documentos. Passados alguns meses, foi chamado a integrar a tropa de paraquedistas – os militares que coordenavam o processo seletivo tiveram uma boa impressão dele e levantaram sua certidão de nascimento no cartório de registro civil da capital mineira.
Foi no Exército que Garcia comprou a primeira câmera, uma Olympus Trip 35. Diante de pedidos dos colegas, passou a fotografar os saltos dos paraquedistas. O dinheiro obtido com a venda das imagens era integralmente guardado, assim como a maior parte do salário. Os soldados da Brigada de Infantaria Paraquedista tinham uma remuneração bem acima dos demais soldados, o que permitiu a ele fazer uma boa poupança. “O que eu queria mesmo era me tornar fotógrafo. Quando senti que tinha guardado o suficiente para seguir esse caminho, saí do Exército, comprei um equipamento profissional e tomei duas providências: me inscrevi em um curso de inglês e em um curso de História da Arte com o professor Mario Barata, que na época era um crítico muito famoso no Rio”, recorda Januário Garcia.
Fotojornalismo e LPs
Com inglês fluente graças ao curso e às incursões pelo porto do Rio, onde praticava conversação com marinheiros de diversas partes do mundo, Januário Garcia pôde aproveitar a oportunidade de se formar em um curso de Comunicação Visual dado por especialistas da International Cameraman School. Também foi estagiário no estúdio de fotografia de George Racz.
No final da década de 1960, passou a atuar como fotojornalista freelancer. Nessa condição, publicou nos principais veículos de comunicação do Brasil, dentre eles os jornais O Globo, O Dia, Jornal do Brasil e A Notícia, e as revistas Veja, IstoÉ, Manchete e Fatos e Fotos. Nunca quis trabalhar fixo em uma redação para não perder a liberdade de ação, pois desde essa época já documentava a questão racial.
Dono de uma mente inquieta, ele decidiu mudar de ramo mais uma vez no início dos anos 1970. Abriu um estúdio no bairro de Santa Tereza e passou a fazer fotografia publicitária. Atendeu importantes agências e ganhou muito dinheiro, mas a atividade não chegou a satisfazer seu desejo criativo. O amor pela música, principalmente pelo jazz, carregou-o para outro nicho. “Via aquelas capas de LP de jazz fantásticas e um dia decidi que era aquilo que eu queria fazer. Na época, era um nicho de mercado muito restrito. Mas ia diariamente na gravadora Polygram e ficava esperando horas para falar com o diretor de criação, Aldo Luis. Acho que de tanto insistir ele acabou ficando com pena de mim e resolveu me dar uma chance”, conta.
Januário Garcia foi escalado para fazer as imagens do LP Em Busca do Tempo Perdido, da banda de rock O Peso, lançado em 1975. Para a capa, produziu uma imagem na qual os integrantes da banda se escondem em um quarto enquanto um hipopótamo passeia pelos jardins, no lado de fora. Chamado para avaliar o resultado final, o lendário André Midani, gerente geral da gravadora, ficou alguns minutos em silêncio e sentenciou: “Depois de muitos anos nesse País, encontrei alguém que entende o que é a capa de um disco”, relata Garcia.
A primeira capa de LP abriu caminho para muitas outras. De 1975 até o início dos anos 2000, Januário Garcia produziu capas memoráveis, de LPs como Urubu (1976), de Tom Jobim; Alucinação (1976), de Belchior; Há 10 Mil Anos Atrás (1976), de Raul Seixas; Muito (1978), de Caetano Veloso; Chico Buarque (1978), de Chico Buarque; Eu Canto (1978), de Fagner; e Crença (1980), de Fafá de Belém. “A capa de disco era uma das áreas que realmente valorizam o fotógrafo. Quando um músico ia gravar seu disco, acreditava que aquele era o melhor trabalho da vida dele e se colocava à disposição do fotógrafo para tudo o que fosse necessário. A relação de colaboração era intensa. Graças a isso, fiz amizade com muitos artistas da MPB. Cada novo trabalho era uma nova viagem”, explica o fotógrafo.
As transformações no mercado com o surgimento do CD e a chegada de novos profissionais acabaram fazendo com que Januário Garcia se distanciasse aos poucos desse nicho. Em paralelo, a documentação das causas do movimento negro foi ganhando espaço, tanto que, em parceria com o antropólogo Júlio César de Souza Tavares, da Universidade Federal Fluminense, ele produziu uma extensa documentação da diáspora africana na América do Sul, percorrendo todo o continente. O trabalho foi concluído em 2006 e exibido em vários países.
Também durante muitos anos, Januário Garcia documentou o morro do Salgueiro, no Rio. Além de atuar em movimentos de luta dos negros, retratou manifestações e personalidades, criando um acervo único nessa área, com cerca de 70 mil imagens. Até hoje ele fotografa diariamente e atua como ativista, realizando cursos de formação em fotografia. Dono de uma personalidade cativante, ele resume assim sua trajetória: “A luta negra é parte da razão do meu viver, mas a fotografia é a razão do meu viver”.