Arte-educadora e fotógrafa cearense, Sabrina Moura tece uma trajetória onde a imagem opera como ferramenta de transgressão pedagógica e descolonização do olhar. Aos 41 anos, fortalezense orgulhosa – “a nata do lixo, o luxo da aldeia”, como canta Ednardo –, constrói um trabalho que habita as brechas dos espaços não formais de educação, desde ateliês de imagem com crianças atípicas até oficinas em patrimônios públicos do Ceará. Sua fotografia, iniciada na infância com uma câmera analógica Yashica, transformou-se em linguagem política e afetiva, alimentada por marcadores de gênero e território e pelo compromisso com uma educação que liberta.
Seu ensaio “Qual história contamos“, finalista na categoria Ensaio do Prêmio Portfólio FotoDoc 2025, é um ato de insurgência contra a colonialidade que persiste na memória cearense. Realizado em 2021 no chamado “Museu Negro Liberto” – propriedade particular em Redenção (primeira cidade a abolir a escravidão no Brasil) –, o trabalho desvela o falseamento histórico que romantiza a senzala e apaga a violência escravocrata. Através de uma técnica artesanal com espelhos e papel, Moura cria composições que espelham o dualismo perverso entre a Casa Grande e a Senzala, expondo narrativas que insistem em repetir “eram bons patrões”. Mais do que denúncia, a série propõe uma reescrita fotográfica da história, articulando luta antirracista e experimentação visual para questionar: quem controla a memória? Que passados estão sendo inventados?
Mergulhe na entrevista a seguir para conhecer os projetos que entrelaçam fotografia, ancestralidade e utopias imagéticas.



Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Tenho 41 anos, moro em Fortaleza, no estado do Ceará, “eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu só do Ceará”, tomando emprestado os versos do Ednardo (compositor cearense). Meu trabalho como arte-educadora, inscrita pela fotografia, tem habitado espaços não formais da educação, a saber: ateliês de imagem com crianças atípicas do Iprede (Instituto da Primeira Infância) – Projeto Vincular; além de ministrar aulas/oficinas nos espaços patrimoniais públicos de arte e educação no Ceará.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
‘Olha o passarinho!’ se tornou um estado de si desde a minha infância, iniciado pela experimentação lúdica. Ganhei minha primeira câmera fotográfica aos 12 anos. Era meu brinquedo favorito, uma analógica da Yashica, básica. Por questões de ordem financeira, dado os imperativos do capitalismo, demorei para possuir uma câmera digital. Em 2012, fiz meu primeiro curso de fotografia, Curso Básico da Casa Amarela, na Universidade Federal do Ceará (UFC), que abriu minhas lentes para as variações ópticas dessa arte enquanto linguagem social, humana, política, fortalecendo minha paixão. Após esse primeiro curso, captar saberes relacionados à fotografia me fez flanar em processos auto, hetero e ecoformativos.
O saber ensinar também me envolveu como cerne, relacionados aos flashes familiares, me conduzindo ao curso de Licenciatura em Artes Visuais pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE), produzindo uma leitura da fotografia com a educação transgressora. Nessa perspectiva, e imbuída dos marcadores gênero e território, adentrei no grupo do Sol para Mulheres, coletivo de fotógrafas cearenses. O território singular-plural da fotografia enquanto leitura de mundo me convoca a ser mais, conceito freiriano movente em mim, para codificar e decodificar pelas imagens as existências e resistências.


Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2025. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
O Ensaio “Qual história contamos” evoca um espaço de resistência à escravidão no Ceará que ainda produz marcas da colonialidade. Em 2021 fiz uma nova visita ao “Museu Negro Liberto”, localizado no município de Redenção-CE, primeira cidade a “libertar os escravizados no Brasil”. O espaço é uma propriedade particular que, com fins mercadológicos, desreferencializou a história dos negros e negras no Ceará em falseamento da arquitetura e da oralidade pelos guias locais – “Eles eram bom patrões”.
Uma senzala customizada e romantizada nas lentes do pacto da branquitude. “Esse ambiente é um acervo memorialístico aos negros e negras que viveram aqui”. Nas capturas de imagens, tentei registrar os ambientes do Museu, espelhando o dualismo emitido nas realidades distintas da branquitude (espaços da Casa de Engenho) e da negritude (Senzala).
Esse trabalho foi realizado em 2021, em análise do escamoteamento e dualismo histórico sobre a escravidão no Ceará. Representa, portanto, um modo de inscrição fotográfica na luta antirracista, que também constitui minha identidade. Como técnica de fotografia artesanal e experimental, construí um suporte de papel e pedaços de espelhos que utilizei na frente da lente para gerar essa junção de imagens.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Tenho alguns projetos em andamento, mas gostaria de destacar o projeto “Mar de Simoa”, que, em continuidade da leitura histórica dos povos do Ceará, também traz inferências de gênero e raça, numa lente interseccional. Como movimento de alteridade, desenvolvo uma pesquisa biográfica pela fotografia experimental em movimento heurístico sobre as mulheres negras em contexto de escravidão no Ceará. A tematização geradora é mobilizada pela biografia-imagem de Preta Tia Simoa, mulher negra atuante na mobilização comunitária que deu origem à “greve dos jangadeiros” de janeiro de 1881, quando se decretou o fim do embarque de escravizados negros através do porto de Fortaleza, definindo os rumos para a abolição da escravidão no estado do Ceará, que se efetivou três anos mais tarde em todo o território brasileiro.
No devir do meu eu-fotográfico, aponto para utopias imagéticas que componham ideias para adiar o fim do mundo (Ailton Krenak), tendo o futuro ancestral que se ligue a uma tríade: memórias afetivas – natureza – ancestralidade. Um imageamento sempre transgressor.

