A cobertura de situações como a das queimadas na Amazônia exige uma logística fora do comum. Longas distâncias, zonas de incêndio, locais em que o poder público quase não chega, infraestrutura de estradas e internet deploráveis, dificuldades das mais variadas fazem com que aqueles que se planejam melhor consigam obter uma vantagem competitiva. Três fotojornalistas que se destacaram nessa cobertura contam como foi o desafio: Gabriela Biló, da Agência Estado, Ueslei Marcelino, da Agência Reuters, e Victor Moryiama, freelancer que cobriu a história para a ONG Greenpeace e o jornal The New York Times.
O ponto de vista dos fotojornalistas se complementa com o relato de Paulo Behar, fotógrafo de natureza que realizou uma expedição à região em parceria com Victor Chahin. Todos os relatos coincidem ao realçar duas sensações: tristeza e exaustão diante dos fatos que ocorreram entre os meses de agosto e setembro de 2019, levando o Brasil a ganhar páginas da imprensa internacional por um lamentável motivo: incêndios que se alastravam em diversos pontos da Amazônia, sobretudo no chamado “arco de desmatamento”, zona de expansão agrícola que se estende desde o Acre até o Maranhão.
Logística e deslocamento
“Em situações de crise ou risco, a logística tem que ser sua principal preocupação. Se você não pensar e colocar um pé à frente das possíveis situações, vai ter problemas maiores”, ensina Ueslei Marcelino. O planejamento se dá em grande medida antes da partida, por meio de uma pesquisa prévia e da consulta a fontes que estão no local ou que conhecem em profundidade o tema abordado. Todos os fotógrafos entrevistados partiram de Porto Velho, capital de Rondônia, um dos locais de melhor infraestrutura entre as regiões mais atingidas por focos de incêndio.
Marcelino passou 35 dias na região da Amazônia acompanhado do colega de vídeo da Reuters, Leonardo Benassatto. No primeiro período, eles fizeram idas e vindas com veículo 4 x 4 alugado em Porto Velho. Rodaram pelo norte de Rondônia, o sul do Amazonas, e foram até o Acre para acompanhar um ritual indígena em defesa da floresta. Depois, voaram até o Maranhão e foram para a Terra Indígena Arariboia, próximo ao município de Amarante do Maranhão.
Gabriela Biló viajou acompanhada do repórter de texto André Borges, que conhece bem a Amazônia. Foi ele quem programou o trajeto percorrido. Os dois partiram de Porto Velho e seguiram pela Transamazônica, BR-230, passando por Humaitá, Lábrea, Manicoré, Santo Antônio do Matupi, Apuí e Reserva Indígena Tenharim/Marmelos, todas no sul do Amazonas. O percurso foi feito em veículo comum, passando por estradas de terra. “Infelizmente não tínhamos um carro 4 x 4, o que dificultou muito. Nosso carro era alto, o que nos salvou. Chegamos a atravessar um rio com ele devido à precariedade de uma ponte que, se passássemos por ela, tínhamos a impressão de que não suportaria o peso”, conta Biló.
Victor Moriyama fez os deslocamentos a partir de Porto Velho também em veículo 4 x 4 alugado na cidade. Ele contratou um guia e um motorista local, fundamental para o sucesso da cobertura. Acompanhado do guia, passou por municípios no interior do Amazonas e de Rondônia, como Jaru, na terra indígena Uru-eu-wau-wau, e Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia. Ele chegou no dia 22 de agosto, quando a pauta começava a chamar a atenção da imprensa internacional, e relata que em poucos dias a cidade foi “invadida” por jornalistas de diversos veículos e agências. Da cidade era possível ver no horizonte os focos de incêndio. Havia muita fumaça no ar.
Dadas as dificuldades de acesso por terra e as grandes distâncias a percorrer, uma boa parte da cobertura foi feita do ar, em sobrevoos realizados em pequenos aviões Cessna. Moriyama conta que o aeroclube de Porto Velho contava com uma empresa que serviu bem a toda demanda, cobrando um valor de R$ 800 por hora de voo.
Já as aproximações dos focos de incêndio, tanto por ar como por terra, exigiram muita atenção e prudência. “O risco é real. O fogo vira rápido com o vento e, se você não estiver bem posicionado, fica desorientado e preso no incêndio”, explica Gabriela Biló, cuja cobertura foi toda feita por terra. “Nas aproximações por aeronave em áreas de queimada ou garimpo, sempre pedia para baixar um pouco mais e o piloto me alertava até onde poderíamos ir em segurança, para não ter problemas”, relata Ueslei Marcelino.
Por conta de trabalhar em uma grande agência internacional, Marcelino já passou por diversos cursos de segurança para situações de risco. “Nós recebemos treinamentos para cobrir ambientes hostis quase todos os anos pela Reuters e aprendemos algumas coisas simples, porém muito importantes, como manter os pés secos, as botas limpas, se hidratar com mais regularidade, dormir assim que puder e evitar o risco. Acabei fazendo isso quase que de maneira militar, o que me ajudou muito. O desgaste físico das caminhadas dentro da mata não foi brincadeira”, recorda.
Equipamento e conexão
Marcelino levou equipamento fotográfico, notebook, um telefone satelital, um terminal BGAN para transmitir fotos e textos de lugares remotos, e um aparelho GPS, além de diversas baterias extras, que serviam para recarregar o computador e os aparelhos, e um inversor de voltagem, que garantiu uma “tomada elétrica” no carro. Nas viagens por terra com 4 x 4 era necessário poupar ao máximo o veículo para evitar quebra. “Ao imaginar que poderíamos ter um problema com o carro, nos perder ou ter que ficar mais tempo para registar alguma cena ou esperar uma luz mais bonita, fizemos uma pequena dispensa com alimentos básicos que nos ajudou nas andanças. Também levamos combustível extra. Algo que achei impressionante foi a quantidade de sujeira que as lentes e câmeras pegavam. Temos de estar ligados também nesse aspecto, a limpeza do equipamento”, lembra Marcelino.
Como fotógrafa da Agência Estado, Gabriela Biló não tinha os mesmos recursos tecnológicos de transmissão disponibilizados pela Reuters. “Um dos maiores desafios era a conexão. Do que adianta termos o material se não pudermos contar para o mundo o que está ocorrendo? O computador não conectava nem com reza, todo o material, texto, foto e vídeo, era enviado via WhatsApp em pequenas cidades que encontrávamos, com bastante compressão e pouca resolução, tendo que ser interpolada pelos profissionais do jornal para publicação”, relata Biló.
Como estava fazendo uma cobertura mais “fria”, voltada principalmente para uma grande reportagem que o jornal The New York Times planejava publicar em novembro de 2019, Victor Moriyama podia retornar à base em Porto Velho para, de lá, enviar o material. Moriyama conta que a situação em campo era de fato catastrófica. “As imagens me lembram o Apocalipse, me lembram um pouco daquele filme Platoon, com árvores pegando fogo em um cenário de guerra. De fato, o que está acontecendo é uma guerra pela floresta. Por um lado, os índios querem sobreviver da floresta e o que ela oferece, a caça, os frutos, a água. Por outro lado, há pessoas que não têm muitas oportunidades e acabam sendo empregadas na derrubada da floresta para abrir novas fronteiras agrícolas”, analisa.
Guardiões da Floresta
A cobertura dos três fotógrafos envolveu o contato com povos indígenas, na busca de reportar o drama vivido por eles. Moriyama se embrenhou pelas terras dos Uru-ue-wau-wau, em Rondônia. Para chegar até a aldeia, teve de caminhar por oito horas em mata fechada e chegou a ter um início de desidratação, que causou alucinações leves. Dormiu por lá e acompanhou um grupo na abordagem de madeireiros ilegais. “Eles estavam armados de arco e flecha, preparados para o embate. Havia uma tensão no ar. Encontramos o local onde os madeireiros atuavam, mas não tinha ninguém. Eles queimaram os barracos, como de praxe, mas não houve conflito”, relata.
Gabriela Biló esteve na reserva Teharim/Marmelos, no Amazonas. Ela e seu companheiro de cobertura foram guiados por Antonio Teharim, integrante da tribo que estava desolado com as queimadas dentro da reserva. “Até onde se via eram cinzas. Levamos quase duas horas para chegar ao local de difícil acesso, cheio de areais, pontes quebradas e lamaçais. Uma vez lá, tive minutos para fazer a foto e retornar a algum local com conexão para transmitir a tempo do fechamento do jornal impresso”, lembra.
Como havia ficado tarde, Antonio convidou-os a dormir na aldeia. “No dia seguinte, entendemos como era grande o impacto naquele povo, tanto que os próprios Tenharim se voluntariavam para lutar contra o fogo na brigada do Prev Fogo, do Ibama. Me marcou muito o desespero, a tristeza e a vontade de ajudar desse povo”, recorda Biló.
A história mais tensa foi vivida por Ueslei Marcelino. Ele e Leonardo Benassatto passaram sete dias na Amazônia maranhense, para registrar a ação dos Guajajara, na reserva Arariboia.
Os indígenas criaram uma brigada para proteger a floresta e fazem incursões pela mata na busca de desbaratar a ação de invasores. Assim, ao acompanhar uma ronda, Marcelino viveu uma situação de confronto, quando os indígenas interceptaram três caminhões com madeira explorada de forma ilegal em suas terras. “Houve troca de tiros na abordagem. Os motoristas do caminhão fugiram e um madeireiro foi capturado. Depois, o madeireiro foi liberado e os Guajajara voltaram para as aldeias com mais uma missão realizada, visivelmente cansados e aliviados por estarem vivos. Nunca tinha vivido algo tão intenso numa cobertura. Foi realmente difícil”, recorda.
O olhar de fotógrafos de natureza
Os fotógrafos de natureza e vida selvagem Paulo Behar e Victor Chahin também estiveram na Amazônia para registrar o impacto das queimadas. A partir de Porto Velho, fizeram incursões pelo interior de Rondônia, ao longo da BR-364, e na Vila Samuel, próxima à Floresta Nacional do Jacundá.
Behar conta que as paisagens da floresta em chamas ou em cinzas são constantes na região. Os madeireiros retiram primeiro as árvores nobres e deixam espaço aberto à ação dos grileiros, que se apropriam da terra, colocam fogo na floresta ou passam o “correntão”, grossas correntes presas a tratores para deixar o terreno limpo e pronto para virar pasto. A terra “limpa” vale dez vezes mais do que a terra coberta pela floresta.
“Durante nosso retorno da Vila Samuel, passamos por quilômetros de pastos sem fim e quantidades enormes de terras improdutivas. São terrenos que seguem na recuperação da pastagem, para receber o gado quando o pasto atingir a altura adequada. Se a terra não for usada para boi, certamente será usada para a soja, alimentação básica do gado. Num país em que o rebanho bovino chega a 215 milhões de cabeças, manteremos o status de maior exportador mundial de carne ao custo das florestas”, prevê Behar.