Criador do Manual do Fotógrafo de Rua, o inglês David Gibson acredita que sua especialidade não é um conceito ou um campo definido, mas uma atitude. Ela diz respeito essencialmente à relação do fotógrafo com o ambiente urbano. E muitas atitudes são possíveis nesse contexto. O fotógrafo pode optar por passar despercebido, “roubando” imagens de forma sorrateira, ou pode interagir com as pessoas e chamá-las a participar, criando ambiguidades entre o espontâneo e o encenado. “O que é a fotografia de rua? A questão é mais bem respondida considerando-se primeiro quem faz fotografia de rua. Se você der um mergulho profundo nas motivações, tudo se torna mais claro”, diz Gibson.
Nem sempre as pessoas são o principal foco. Há fotógrafos de rua que focam texturas, grafites, cartazes, escritos, anúncios, vitrines, elementos arquitetônicos, placas e sinalizações de trânsito. A paisagem urbana é densamente povoada não apenas de pessoas, mas também de elementos visuais. Alguns trabalhos se concentram exatamente na interação entre o elemento humano e a paisagem urbana.
Na relação entre fotógrafo e ambiente urbano, o equipamento entra como um elemento fundamental. Não se trata de ter o melhor equipamento, ao contrário, muitas vezes o mais simples, compacto e leve tem larga vantagem. O importante é ter rapidez no foco e no disparo. Seja qual for a câmera escolhida, ela só será eficiente a partir do momento em que se tornar uma extensão natural do corpo do fotógrafo, algo que só se conquista com a prática constante e sistemática.
Saber esperar
Não há outra forma de se desenvolver na fotografia de rua senão andar muito. É preciso se perder pelas vias urbanas para encontrar imagens únicas e inusitadas. Ao descobrir um cenário interessante, é o momento de parar e observar o movimento ao redor, buscar se antecipar aos acontecimentos, saber esperar.
As saídas a campo devem ser intercaladas com uma constante busca por referências, tanto no universo da fotografia de rua como provenientes de outras áreas e mesmo de outras artes. É essencial possuir uma cultura visual para conseguir encontrar um caminho próprio. As boas imagens não surgem apenas do acaso e da sorte, mas principalmente de um olhar treinado e educado.
A fotografia de rua também envolve questões éticas. A princípio, não é necessário solicitar autorização para uso de imagem de pessoas fotografadas em espaços públicos. Porém, o fotógrafo estará suscetível a ações judiciais caso haja algum tipo de dano à imagem do cidadão, que não deve ser fotografado em uma situação constrangedora ou degradante. O cerne da questão não é jurídico, mas ético, já que pessoas em situação de rua, por exemplo, não têm meios para se defender.
Visto pelo viés histórico, a fotografia é filha da revolução industrial, assim como as grandes cidades. Ela surge em meio a um ambiente de rápida urbanização e massivo êxodo rural. Não é sem razão que a primeira imagem icônica apresentada ao público por Louis Daguerre, em 1839, tenha sido uma imagem do Boulevard du Temple, uma das vias mais movimentadas de Paris. A massa de transeuntes é vista como um espectro, dado o longo tempo de exposição exigido, mas é possível enxergar um homem que engraxava os sapatos – teria sido por acaso ou proposital?
Mas foram necessárias algumas décadas de desenvolvimento técnico para que a fotografia chegasse às ruas. Em primeiro lugar, o surgimento, na década de 1870, das placas secas, que podiam ser expostas em frações de segundo e dispensavam os fotógrafos de preparar e emulsionar os negativos. Em 1888, com o surgimento da primeira Kodak, vem a popularização, a câmera se torna compacta e passa a usar filme em rolo.
Fotografia moderna
A fotografia de rua ganharia seu maior impulso a partir do início do século 20. O movimento Photo-Secession, nos Estados Unidos, transitou do pictorialismo para a fotografia direta, por meio das imagens de Alfred Stieglitz e Paul Strand realizadas nas ruas de Nova York. No Brasil, destacam-se nesse período Augusto Malta, grande cronista da vida carioca na virada do século, e Vincenzo Pastore, que saiu do ambiente controlado do estúdio e ganhou as ruas de São Paulo na década de 1910, revelando o rosto dos transeuntes com uma espontaneidade inédita.
É com o surgimento da Leica I, primeira câmera para rolos de filme de 35 mm, lançada em 1925, que a fotografia ganha definitivamente as ruas. A câmera alemã trouxe duas características fundamentais: leveza e agilidade. O francês Henri Cartier-Bresson foi o primeiro grande nome a encarnar essa transformação, assumindo-se como fotógrafo da espontaneidade, aquele que perambula na busca de captar instantes únicos.
São inúmeros os fotógrafos que seguiram nesse caminho aberto por Cartier-Bresson e pelo surgimento da agência Magnum, fundada por ele em Paris, em 1947, em parceria com Robert Capa, David “Chim” Seymour, George Rodger e William Vandivert. Dentre os nomes mais conhecidos da fotografia de rua estão Robert Doisneau, Walker Evans, Robert Frank, William Klein, Helen Levitt, Lee Friedlander, Elliott Erwitt, Bruce Gilden, Daido Moriyama, Garry Winogrand e Vivian Maier. No Brasil, destacam-se nomes como German Lorca, Hildegard Rosenthal e Carlos Moreira.
Coletivos contemporâneos
Com o desenvolvimento recente dos smartphones, criou-se uma legião de potenciais fotógrafos de rua. Milhões de imagens são feitas diariamente nas cidades ao redor do mundo e compartilhadas via redes sociais. No rastro dessa ampliação, também os coletivos e as comunidades de fotógrafos de rua, tanto internacionais como locais, se multiplicaram. Observe, Burn my Eye, Full Frontal Flash e The Street Collective são alguns exemplos de coletivos internacionais que emergiram em anos recentes.
O premiado fotógrafo Gustavo Minas, de Cássia (MG), faz parte do Burn my Eye desde 2018 a partir do convite de alguns membros. Conta que não conhece nenhum deles pessoalmente, mas troca ideias constantemente por meio de um chat no Facebook e um grupo no Flickr. “Como em todos os coletivos desse tipo, a maior dificuldade é fazer as coisas acontecerem fora do mundo virtual. Publicações de zines, exposições e encontros têm sido discutidos desde que entrei, mas ainda não saíram do papel. Há membros na Europa, Ásia, EUA e aqui. Tem sido uma boa experiência”, comenta.
David Gibson: inspiração nos livros
Alexandre Urch: a rua como ela é
Guillermo Franco: o real como ficção
Melvin Quaresma: a importância dos coletivos
Matérias publicadas originalmente em Fotografe Melhor 279