O som que resiste
A história de Seu Ernani e sua loja de instrumentos durante a enchente de 2024
A cidade de Porto Alegre submersa pelo negacionismo e mudanças climáticas. Seu Ernani tem 88 anos e uma vida inteira de trabalho e memórias no mesmo lugar: a zona norte de Porto Alegre.
Militar aposentado, orgulha-se de ter servido em 1963 na Faixa de Gaza, batalhão de Suez, quando a região ainda era deserta. Depois da farda, trocou. Abriu o “Brick do Ernani” na Avenida Brasil, loja de compra e venda de instrumentos musicais usados — seu refúgio e paixão.
A loja fica em uma área que, segundo ele, foi um dia um grande banhado chamado Martin Guerreiro. “Tinha até jacaré por lá”, recorda. Com o tempo, o banhado foi aterrado com palha de arroz e se transformou em bairro comercial. Mas a terra, como o rio, tem memória.
Em maio de 2024, o Rio Guaíba voltou a tomar o que era seu.
Na sexta-feira, a água já chegava pela Avenida Cairú, esquina Avenida Brasil. No sábado pela manhã, quando o filho de Seu Ernani foi até a loja para entregar um saxofone, encontrou o espaço submerso: mais de um metro e meio de água no interior. Não havia mais o que salvar.
Tudo o que estava embaixo foi perdido, coberto por uma lama espessa e fétida.
Restaram apenas os instrumentos pendurados — violões, guitarras — como sobreviventes suspensos no tempo.
O prejuízo passou dos R$ 100 mil.
Mesmo assim, Seu Ernani não desanimou.
Homem de fé, não frequenta igreja, mas reza o terço todas as manhãs.
Durante nossa conversa, os dedos não deixaram as contas. A fé, para ele, é parte da rotina — como abrir a loja todos os dias.
Com paciência e coragem, limpou, jogou fora o que se perdeu, comprou novos equipamentos e recomeçou.
Hoje, o Brick do Ernani está de portas abertas novamente.
Mais do que uma loja, é sua companhia, seu motivo de sair de casa, de conversar, de ouvir e vender música. As marcas da enchente ainda estão a memória e nas paredes da loja. “Enchente sempre vai ter. O que é do rio, o rio pega de volta”, diz com tranquilidade. Como milhares de porto-alegrenses é mais fácil justificar como um processo natural e negar as mudanças climáticas, do que encarar a realidade que se impõem e agir preventivamente. Mas ele segue firme, porque — para Seu Ernani — a música não pode parar.
E a vida também não.