A reclusão imposta pela pandemia passa a exigir uma outra relação com a casa. Sem a correria do dia a dia, alguns aspectos da moradia passam a demandar maior atenção: algo que há tempos precisa ser consertado, uma pequena reforma aqui ou acolá, uma nova pintura, enfim, a casa parece começar a falar. E, então, singelos detalhes que no frenesi dos tempos de normalidade nos escapam, passam a aguçar nossa percepção. Cantos, recantos, perspectivas inusitadas, ângulos insuspeitos, uma fina poeira pairando no ar, luzes e sombras difusas, na calmaria desses dias, convidam para uma apreciação mais serena, interior.
Entre a solidão e a solitude do isolamento, os silêncios da casa murmuram através de imagens e essa fugaz atmosfera evoca vastas emoções e pensamentos imperfeitos: a fresta de luz que escorre pela porta de um quarto evoca saudades da filha que mora longe; por outra porta entreaberta, do quarto da outra filha que ainda dorme, uma réstia de luz anuncia o verão; entre as persianas da janela, a cidade lá fora amanhece e nos chama para uma aventura em suas ruas vazias.
Especialmente nas primeiras horas da manhã, ainda entre o devaneio do sonho e a realidade que se impõe, esses biografemas barthesianos de imagens de um tempo em suspensão convertem-se em fotografemas de outras atmosferas.
Ana e Jorge Eiró
Belém, junho de 2023.