Tendo participado por 160 anos da história de Salvador, os trens do subúrbio despediram-se no dia 13 de fevereiro de 2021 como modal de transporte na cidade. Este ensaio é o registro do que ocorreu por décadas no cotidiano de muitos moradores dos diversos bairros periféricos do entorno da ferrovia, que utilizavam o trem como principal meio de transporte aos bairros mais centrais, onde o comércio acontece com mais vigor.
A decisão de me despedir da ferrovia e dos lugares que a margeavam vem do desejo de manter vivas as imagens para além da minha memória: as lindas paisagens, os lugares emblemáticos, ruínas que contam a história de outros tempos, bem como a própria estética dos trens, trilhos, sinaleiras e todos os componentes constitutivos da ferrovia e suas estações. E por que não dizer dos seus vizinhos e os assíduos passageiros que diariamente a visitava. Talvez essa seja mesmo a palavra: passageiro. Tudo é passageiro. Infelizmente o trem também foi.
O momento de saudosismo feliz trazia boas lembranças de episódios vividos naquele lugar lindo em plena região periférica, rica em cultura, mas por muito tempo negligenciada pelos governantes. Contudo uma certa tristeza também me tomava por não concordar com a extinção desse modal de transporte, antes desejava a integração entre ele e os novos que chegam para fazer a cidade pulsar conforme sua realidade de ocupação, suas conformações da textura urbana sempre viva e dinâmica.
A verdade é que os caminhos e descaminhos da cidade é moldada por muitos interesses, quer autênticos, como os desejos dos habitantes dela, quer frutos de decisões políticas governamentais, que podem ser benéficas à sociedade, ou apenas favorecimento de setores econômicos do capital. De uma forma ou de outra a cidade e a sociedade que a habita é transformada.
O presente ensaio traz, além do espaço físico das estações, paisagens idílicas no uso cotidiano do trem como meio de transporte pelos moradores da periferia de Salvador, um recorte de atravessamentos simbólicos que rememoram o período escravocrata (que em alguns aspectos nunca terminou), onde “mais de 12,5 milhões de africanos foram trazidos para o continente americano” (ZORZETTO, 2020) através dos navios negreiros.
O paralelo simbólico é inevitável, pois assim como o povo africano foi mal acondicionado, tratado como mercadoria, na diáspora forçada, assim também o transporte público e a moradia urbana nas periferias do Brasil perpetuam aos seus descendentes, povo preto periférico, espaços sem a devida dignidade. O povo preto resiste, sonha com dias melhores, um transporte mais digno, o respeito ao seu corpo, uma cidade mais humanizada, onde o termo periférico não signifique falta de dignidade, abandonado pelo poder público, apenas aquele lugar fora do centro urbano.