“Em julho de 1998 estive em Dourados (MS) com minha Nikon F4, 30 filmes TRIX 400 na bolsa, para fotografar a aldeia Bororó, da reserva Francisco Horta Barbosa, distante 3,5 km do centro urbano. O objetivo foi documentar a cultura Guarani Kaiowá, como parte da pesquisa sobre resgate da cultura indígena da universidade local (UNIGRAN). Durante 2 semanas, saímos todos os dias com uma Kombi cedida pela universidade para visitar de duas a três famílias, junto com alunos da pesquisa. No primeiro contato, nos apresentamos como integrantes da pesquisa e iniciamos uma aproximação. Durante a conversa, sentíamos quem eram, como viviam e quais eram suas necessidades. Como a intenção da pesquisa era resgatar sua cultura, perguntamos se mantinham algum ritual ou tradição, e se produziam algum tipo de artesanato. Em seguida, pedia permissão para fotografá-los.
A língua na aldeia é o guarani, falado na presença de estranhos, mas grande parte falava o português também. Todo material foi feito do lado de fora: não entramos nas habitações (e nem fomos convidados), devido ao tempo curto e também pela falta de iluminação. Eles vivem sem energia elétrica e sem água encanada. Lampiões e poços de água eram as alternativas. Para os que moravam afastados da estrada principal, havia postos com água encanada e tanques para lavarem as roupas. Suas habitações eram cobertas com sapé, mas, pela sua falta, muitas eram feitas de lona ou plástico, em situações precárias. As famílias tinham um espaço fora de sua habitação para plantar sua cultura de subsistência. Em poucas delas vimos fartura de alimentos como frutas e verduras.
Durante as visitas encontramos as mulheres em casa, cuidando dos filhos e muitas viúvas também. As crianças eram muitas, cada família tinha no mínimo três filhos, que conviviam com avós, tias e vizinhas. Os homens trabalhavam fora e só chegavam à noite. Suas alternativas de trabalho eram as usinas, ou na própria cidade. Também visitamos as “casas de reza”, uma da Funai e outra particular, locais em que rezam, entoam cantos, curam, e fazem danças e rituais, orientados pelos sábios da aldeia. Na última família, conhecemos os anciãos da aldeia. Esta família produzia artesanato, feito para venda e para ser usado nos rituais. A pedido da equipe, a família se reuniu e nos apresentou um ritual de canto e dança, guiado pelo casal centenário, que, segundo nos disseram, tinham 104 e 109 anos”. (Caderno de campo, julho de 1998).
Tekoha é o círculo vital de sobrevivência de uma aldeia, espaço delimitado por um rio ou uma árvore, de onde provêm matérias-primas para subsistência e produção de artesanato. A terra é o centro de suas necessidades e se divide entre a casa e o terreiro, plantio, e perambulação, caça e pesca. Longe de seu habitat, perdem sua identificação étnica. Deslocados de suas terras ancestrais e confinados em reservas, sem a mata e os rios, sofrem grande impacto em suas práticas culturais e modos de vida. Em meio a tantas dificuldades, a negação de seus direitos, a violência a que estão sujeitos, essas fotos trazem a resistência de uma cultura, nossa origem ancestral e legítima.
Os Guarani Kaiowá são a segunda maior população indígena do Brasil, concentrados no estado de Mato Grosso do Sul, parte da família linguística Tupi-Guarani. O nome kaiowá quer dizer “filho da floresta”, presentes na região desde 1865. Hoje lutam pela demarcação de terras, com condições de subsistência seriamente ameaçadas, mortalidade infantil, suicídio entre os jovens, assassinato de lideranças, e destruição de casas de reza.
O ensaio é fruto da Exposição Tekoha, realizada no MIS (Museu da Imagem do Som) em Ribeirão Preto, entre 12 de março e 9 de abril de 1999. O material foi produzido de forma analógica (filme TRI-X), com ampliação de 30 imagens PB, em papel fibra, com curadoria de Vicente Sampaio.
Legendas das fotos: Professor Aguilera de Souza (Guarani Kaiowá)