Em tempos de pandemia, vivenciar o isolamento social, para além das polêmicas, tem sido uma experiência difícil para boa parte da população brasileira. Mas, em agosto de 2016, quando viajava pelo interior do Rio Grande do Sul, o fotógrafo carioca André Cunha encontrou uma família formada por pai, mãe, duas meninas e dois meninos com uma história bastante incomum.
O grupo tinha um modo de vida alternativo, baseado em um isolamento social por opção, mesmo que moderado. Cunha se apresentou e conseguiu autorização para desenvolver um ensaio fotográfico sobre o estilo de vida da família desde que não fossem revelados os nomes nem o local onde vivem. De lá para cá, ele se manteve em contato com a família e o ensaio Santuário está se transformando em documentário.
A relação começou quando o fotógrafo estava meio perdido nos rincões gaúchos, com o GPS sem conexão, e parou num vilarejo. Foi em direção a uma venda para pedir informação e, quando chegou à pequena porta do estabelecimento, percebeu que a família estava entrando. “O casal tinha tatuagens exuberantes no rosto e pelo corpo, piercings, cabelos tingidos de múltiplas cores… por segundos me percebi vivendo um tipo de alucinação, algo que não era real. Naquele instante, tive a certeza de que nossas vidas se tornariam interligadas para sempre”, diz Cunha.
Depois de fazer três viagens para encontrar a família isolada, o trabalho recebeu o nome de Santuário e resultou no lançamento de um livro e de duas exposições em 2018, a primeira em abril, na feira The Photography Show, em Nova York, EUA, e a segunda em junho, na galeria Utópica, em São Paulo (SP). O encontro mais recente com a família foi em novembro de 2019.
Modo de vida alternativo
A família “Santuário”, como é chamada por André Cunha, vive em um sítio adquirido com o próprio trabalho na agricultura, distante dos grandes centros urbanos gaúchos. Aos olhos do fotógrafo, o lugar se mostra com ares de paraíso. “A terra é boa para plantar, eles têm um açude para se divertir em dias quentes, o clima é ameno, há sempre um pôr do sol para exaltá-los, além de algumas galinhas, dois coelhos e três cães”, conta.
A relação da família com o mundo se reduz ao essencial. Eles têm acesso à energia elétrica e conta bancária, consomem produtos duráveis, como roupas, móveis e eletrodomésticos, mas o pai procura fazer os próprios móveis e é o responsável pelos reparos na casa. Comem primordialmente alimentos produzidos no sítio, como frutas, legumes, verduras e carne de frango.
O excedente da produção é vendido em duas pequenas feiras que ocorrem semanalmente numa cidade da região – a mãe prepara tortas de maçã comercializadas no mesmo espaço. Como a lei brasileira obriga, as crianças estão matriculadas num colégio. Elas ingressaram na vida escolar já alfabetizadas pelos pais em português e alemão, língua materna do pai. “Eles são extremamente doces, gentis e comunicativos, mas gostam de viver daquele modo. São inteiros ali. Sempre que volto de lá, venho com uma sensação de vazio, uma sensação de que jamais terei tempo para experimentar a vida daquela forma e que, por isso, nunca poderei encontrar aquela felicidade tão plena”, avalia Cunha.
Para chegar ao refúgio onde a família vive, o fotógrafo carioca embarca num avião em São Paulo (SP), onde vive há 16 anos, com destino a Porto Alegre (RS). Da capital gaúcha, de carro alugado, roda bastante até chegar ao “santuário”. Nos primeiros dias do primeiro contato, ele permanecia o dia todo no sítio fotografando e dormia num hotel de uma cidade próxima. Depois de conquistar certa intimidade, passou a dormir na sala da casa.
Pouco equipamento
O projeto foi realizado com uma Nikon D800 e duas objetivas fixas, uma normal e uma meia-tele. “Não vivo sem a minha lente 50 mm, mas, como minhas imagens buscam uma proximidade muito grande com os personagens envolvidos, usei muito a minha 105 mm também para manter certo distanciamento e não quebrar a naturalidade do cotidiano, já que não dirijo as cenas”, explica o fotógrafo. Ele diz não ter grandes preocupações com detalhes técnicos e que alguns parâmetros “errados” podem trazer surpresas. “Muitas vezes gosto quando ‘erro’ no ISO, no foco ou na fotometria. Minha busca é pela poesia, pela temperatura do momento”, ressalta.
Cunha faz as capturas em cor e muito raramente verifica na hora como ficou a foto no monitor da câmera. “Não sei explicar bem o porquê, mas isso me traz certa insegurança. Geralmente só vou olhar as imagens dias depois e funciona muito bem comigo assim”, explica. A conversão para o P&B e o tratamento das imagens são realizados por Marina Neder, do Estúdio 321, que atende grandes nomes da fotografia brasileira.
André Cunha teve o ensaio selecionado para participar da caravana Magnum 70 Anos, no Festival de Fotografia de Tiradentes, em 2017, e ganhou Menção Honrosa no 160 Prêmio Brasil de Fotografia. Teve o trabalho exposto com os demais premiados no Espaço Porto Seguro, em São Paulo (SP), onde chamou a atenção de Pablo Di Giulio, dono da galeria Utópica, responsável pelo livro e pela exposição.
O livro foi produzido em diálogo com Marcelo Greco, que fez a curadoria; Helena Rios foi responsável pelo projeto gráfico; e Monica Paes entrou como apoiadora. A exposição, com 25 imagens, foi preparada em conjunto com Pablo Di Giulio. “O acompanhamento de um curador é fundamental, pois traz uma espécie de discernimento. Ele está lá para dizer que uma imagem pela qual você tem apego talvez não deva entrar. A decisão final foi minha, mas ouvi com muita atenção o que os curadores do livro e da exposição tinham a dizer”, garante. O título do projeto, por sinal, veio somente no final do processo e foi sugestão de Marcelo Greco.
André Cunha encara Santuário como um projeto sem previsão para acabar. “Tenho em mim a vontade genuína de fotografá-los para sempre, acompanhar como essas crianças se desenvolverão, se vão casar, ter filhos, se vão querer continuar a pertencer a esse universo tão particular, enfim… além da curiosidade, existe um elo, um vínculo emocional forte criado entre nós”, assegura. Em meio à pandemia, ele entrou em contato com a família. “Quis saber como estavam. Enfim, a vida deles não mudou quase nada, pois é como se já estivessem num universo paralelo”, comenta.
Designer e fotógrafo
André Cunha, 48 anos, tem formação em Desenho Industrial. Aos 18 anos, começou a trabalhar com a fotógrafa Cibele Clark em seu estúdio no Rio de Janeiro, produzindo imagens editoriais para revistas como Interview, Boa Forma, Sexy e Manequim. Acabou redirecionando sua carreira comercial para o design, criando um ateliê para atender lojistas. A atuação como designer permitiu financiar seus projetos fotográficos autorais e ainda fazer um “pé de meia”.
Com a repercussão de Santuário, Cunha decidiu apoiar todas as fichas em seu trabalho como fotógrafo autoral e fechou seu ateliê de design na cidade de São Paulo no final de 2019. Os interessados em adquirir o livro podem entrar em contato diretamente com o fotógrafo por meio de seu perfil no Instagram: @andrecunhaphoto.