No interior da Mata Atlântica, diante de uma enorme jequitibá-rosa, o fotógrafo paulista Cássio Vasconcellos faz o enquadramento tendo em mente obras de artistas como Debret ou Rugendas. Essa visão artística de uma imagem captada em meio à natureza tem como inspiração expedições europeias feitas ao Brasil no início do século 19 e originou a série Viagem Pitoresca pelo Brasil, realizada em trechos de mata nativa que preservam a condição selvagem encontrada por aqueles viajantes. Depois, as fotos passam por tratamento digital, ganhando uma textura próxima à de gravuras.
Esse trabalho nasceu em 2015 como uma espécie de contraponto à série Coletivos, desenvolvida por Vasconcellos a partir de 2008, baseada em tomadas aéreas que depois são compostas em imagens complexas a partir de manipulações digitais, criando obras hiper-realistas e ao mesmo tempo improváveis. “Cada imagem da série Coletivos me toma muito tempo no computador. Uma delas chegou a demandar um ano de trabalho. Depois de um tempo, me senti meio saturado e com vontade de me reconectar com a natureza. Foi nesse momento que começou a nascer a nova série”, conta o fotógrafo.
Artistas europeus na floresta tropical
Para Viagem Pitoresca pelo Brasil, o fotógrafo pesquisou gravuras feitas durante expedições científicas e artísticas produzidas por pintores e ilustradores em visita ao Brasil na época da monarquia. Cássio Vasconcellos indica três expedições em especial como base para seu trabalho: a Missão Austríaca (1817-1821), capitaneada pelo botânico Carl Friedrich Philipp von Martius e o zoólogo Johann Baptist von Spix; a Missão Artística Francesa, que aportou no Rio de Janeiro em 1816, liderada por Joachim Lebreton; e a Expedição Langsdorff (1821-1829), chefiada pelo barão Georg Heinrich von Langsdorff e patrocinada pela Rússia czarista.
Realizadas pouco antes do surgimento da fotografia, essas expedições contaram com a presença de artistas dedicados à documentação visual do chamado “novo mundo”. Como em grande parte dos casos o intuito era científico, essas imagens botânicas, de paisagens e da flora da floresta tropical, primam pela minúcia e pela precisão. Foram produzidas por pintores e ilustradores como os alemães Johann Moritz Rugendas e Carl von Martius, e os franceses Jean-Baptiste Debret, Conde de Clara, Aimé–Adrien Taunay e Hercules Florence – cabe lembrar que Florence depois se radicaria em Campinas (SP) e lá seria um dos criadores da fotografia, em 1833.
“O material produzido nessas expedições faz parte do imaginário brasileiro. Fico imaginando o impacto que aqueles viajantes tiveram ao se deparar com a exuberância da Mata Atlântica. Isso me inspirou a buscar uma reconexão com a natureza, um contato com um ambiente que não é familiar, um processo de descoberta dos vestígios daquelas paisagens nos dias de hoje”, relata Vasconcellos. Além disso, ele também tem uma relação familiar com essas expedições, já que seu tataravô, o botânico alemão Ludwig Riedel, participou da Expedição Langsdorff, tornando-se depois o fundador da seção botânica no Museu Nacional.
O nome da série, Viagem Pitoresca pelo Brasil, é inspirado no álbum Brésil Pittoresque, lançado comercialmente em 1859 na França, ilustrado com litografias produzidas a partir de fotos tomadas por Victor Frond e com textos de Charles Ribeyrolles. O álbum fez sucesso justamente pelo ineditismo, pelo caráter exótico que as paisagens e os costumes do Brasil despertavam no público europeu.
Ênfase no tratamento digital
Com um trabalho bastante ancorado no uso da manipulação digital, Cássio Vasconcellos conta que a primeira etapa para a concepção de uma nova série é a realização de testes e pesquisas prévias, incluindo modos de tratamento. Antes de sair a campo para fotografar, ele já tem em mente qual será o resultado final. Depois de pronta, a imagem recebe um tratamento que confere uma textura próxima da obtida em gravuras feitas pelos artistas viajantes. Cada hora passada em campo corresponde a muitas horas à frente do computador para chegar ao resultado pretendido.
Como as saídas a campo envolvem longas caminhadas dentro da mata, Vasconcellos explica que sempre leva consigo o mínimo de equipamento necessário. Ele usa DSLR Canon acompanhada de uma lente 24-105 mm f/4 L. As maiores dificuldades técnicas enfrentadas durante a captação das imagens estiveram relacionadas ao ambiente de mata virgem – a maior parte das imagens produzidas até o momento foi captada em zonas de Mata Atlântica, em parques e reservas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
“Nas primeiras viagens, seguia trilhas já conhecidas. Depois, comecei a acompanhar biólogos e pesquisadores em zonas de acesso limitado. Nesse tipo de caminhada, você tem sempre que estar acompanhado. Tem vezes que não existe trilha e você precisa de um mateiro para ir abrindo a picada com um facão. Gosto muito dessa sensação de aventura, mas como não sou muito preparado fisicamente cheguei a ter dores nos joelhos. A chuva na mata é uma coisa linda, mas também traz preocupações com equipamento e acaba atrapalhando no meu caso, que uso óculos”, conta Vasconcellos.
O trabalho foi exposto na galeria Mario Cohen, em São Paulo, ainda em 2015, e na galeria dotART, em Belo Horizonte, em 2016. Em 2019, fez parte da exposição coletiva Nous les Arbres (Nós as Árvores), realizada na Fundação Cartier, em Paris. Inicialmente programada para ocorrer de julho a novembro de 2019, a mostra foi prorrogada até janeiro de 2020, devido ao sucesso obtido junto ao público parisiense.
Desdobramentos e apropriações
Como desdobramento da série Viagem Pitoresca pelo Brasil, Cássio Vasconcellos passou a produzir a partir de 2019 a série Dríades e Faunos, cujo título faz menção a divindades greco–romanas que habitam as florestas. Para produzir essa série, ele transpôs corpos de modelos nus às paisagens desabitadas que fotografou para a primeira série. Esse trabalho originou a primeira exposição individual do fotógrafo, em cartaz na galeria Nara Roesler, no Rio de Janeiro, até o dia 30 de maio de 2020.
À primeira vista, parece que foram utilizados modelos reais. Ao olhar com maior atenção, percebe-se que são modelos retirados de pinturas e cuidadosamente enxertados aos cenários naturais. Para isso, o fotógrafo se apropriou de pinturas acadêmicas da segunda metade do século 19, feitas após o invento da fotografia, em um estilo bastante realista que se aproxima da imagem fotográfica. A maior parte das pinturas é de autoria do francês William Adolphe Bouguereau.
“Gosto de brincar com essa ambiguidade entre pintura e fotografia. As minhas imagens são tratadas a ponto de parecerem pinturas, enquanto as pinturas que eu aproprio foram realizadas em um estilo realista, que mais parece uma fotografia. Essa confusão enriquece o trabalho e faz o espectador compreender que a fotografia é no fundo uma grande ilusão. Ela é também e desde o princípio uma imagem construída e codificada, e não um mero espelho do real”, defende Vasconcellos.
Enquanto Dríades e Faunos é considerada uma série pontual, Viagem Pitoresca pelo Brasil seguirá, pois Vasconcellos pretende ampliá–la com imagens feitas na Amazônia – região foi pouco explorada pelo fotógrafo por conta das grandes distâncias a percorrer e do alto custo envolvido nas viagens.
Em um momento em que as florestas e os povos nativos se encontram ameaçados pela expansão das fronteiras agrícolas, as séries parecem propor uma mensagem de harmonia e comunhão com a natureza. Consolidam também uma nova faceta do diversificado trabalho de Cássio Vasconcellos, atualmente um dos mais ativos fotógrafos na cena artística brasileira.