Se nos tempos da fotografia analógica escolher entre fotografar um ensaio ou um projeto documental em P&B ou em cor era focado na seleção do filme e, por isso, uma decisão sem retorno, na era digital essa eleição é mais maleável, já que a captura é quase sempre colorida e a opção pela monocromia pode ser feita na pós-produção – salvo algumas exceções, como câmeras que só arquivam em P&B, caso da Leica Monochrom. No entanto, mesmo assim, há muito o que pensar sobre o caminho a ser tomado em relação ao trabalho, como atestam fotógrafos renomados como o gaúcho Tadeu Vilani, o maranhense Márcio Vasconcelos e o português-paranaense Orlando Azevedo.
É fato que as imagens em P&B reinaram quase absolutas na maior parte da quase bicentenária história da fotografia, já que o negativo colorido só se tornou popular a partir da década de 1970 (veja box na pág. 35). Com a chegada da era digital, a partir dos anos 2000, a cor se firmou como dominante, enquanto o P&B passou a ter um espaço mais sofisticado, geralmente ligado a produções de fine art, a documentários com forte viés de fotojornalismo ou a uma pegada mais artística.
A fotografia colorida atrai a atenção para as cores dos elementos e da própria fonte de luz, que pode causar sensações “frias” ou “quentes”. Já as imagens em tons de cinza são baseadas no equilíbrio entre luz e sombra. O maranhense Márcio Vasconcelos tem sua produção identificada com a cor, apesar de também fazer ensaios em P&B. Tadeu Vilani é radical: seus documentários são sempre em P&B – embora, quando atuava como fotojornalista do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (SP), a grande parte do seu trabalho era em cor. Orlando Azevedo, por sua vez, transita muito bem entre os dois lados, realizando ensaios e documentários coloridos ou monocromáticos.
Fora da zona de conforto
A pedido de Fotografe, Vilani e Vasconcelos toparam fotografar fora da sua zona de conforto. O gaúcho fez retratos coloridos de pescadores catarinenes com máscaras em tempos de pandemia e o maranhense produziu algo parecido com personagens do centro histórico de São Luís (MA). Foram além: cada um apresentou um trabalho fora do conceito que geralmente usam. Márcio Vasconcelos editou o ensaio Espíritos das Senzalas, que aborda as memórias do tempo colonial por meio de registros realizados em antigas fazendas, minas e cidades onde foi empregada mão de obra escravizada. Já Tadeu Vilani preparou uma série de imagens realizadas no coloridíssimo festival Holi, na Índia – que no projeto original havia sido convertido para P&B.
Apesar da sua forte ligação com a cor, Vasconcelos sente-se à vontade fotografando em P&B. Para ele, o que define a escolha é o tema. “Sinto facilidade e o mesmo prazer em fotografar nas duas linguagens, mas é sempre a temática que se sobrepõe à decisão. Tem época que estou mais a fim de fazer em P&B, então, busco um assunto no qual esse formato se encaixa melhor”, explica.
Ainda que todos os trabalhos que ele publicou em livros tenham sido coloridos, seu primeiro projeto, que resultou em uma exposição, Filhos da Lua, foi feito em P&B. Nesse ensaio documental, ele passou vários dias entre os albinos da Ilha dos Lençóis, no litoral do Maranhão, para desenvolver o ensaio.
Formas de ver a cena
Após decidir que um trabalho será em P&B, Vasconcelos fotografa com outros olhos e passa a “ver tudo em tons de cinza”, tendo especial atenção para a incidência de luzes e sombras. A captura é feita em cor e a conversão é realizada na pós-produção, pois sempre haverá fotos que rendem melhor em cor e são guardadas em seus arquivos para outras utilizações – as imagens são sempre vistas coloridas no monitor da câmera. Ele mesmo faz o tratamento das imagens e não usa nenhum recurso muito sofisticado, apenas ajustes básicos que se adéquam ao estilo de cada trabalho. Prefere imagens saturadas e contrastadas na maioria das vezes.
O ensaio Espíritos das Senzalas nasceu do envolvimento de Vasconcelos com a cultura herdada da África com a vinda de escravos e que se faz muito presente no Maranhão. Nas fazendas e minas, eles trabalhavam de sol a sol e dormiam acorrentados em senzalas, barracões escuros, úmidos e com higiene precária. “O ensaio pretende produzir imagens que mostrem o silêncio, o vazio, o invisível, o encantado, provocando discussões sobre o carnal e o espiritual, questionando se os espíritos desses escravos ainda podem estar acorrentados nas antigas senzalas, casas-grandes, fazendas coloniais, minas de ouro, e de que forma manifestam sofrimentos e súplicas pela libertação”, esclarece.
Ele acredita que os espíritos dos escravos ainda estejam presentes e tenta representar isso por meio das fotografias da série. Para esse objetivo, ele escolheu o P&B e optou por um tratamento que realça os grãos e por capturas em baixa velocidade para registrar borrões. “A escolha do P&B e do tratamento granulado visa remeter a um tempo passado, enigmático, misterioso. A baixa velocidade foi usada pela pouca incidência de luz na maioria das tomadas e também pela busca da captura de vultos, sombras, movimentos de objetos, seres ocultos, que a olho nu não podemos perceber”, explica.
Vasconcelos já fotografou em São Luís e Alcântara, no Maranhão, e em Ouro Preto e Tiradentes, em Minas Gerais. Pretende ainda viajar por outras cidades coloniais onde a mão de obra escrava foi explorada intensamente nas lavouras, e, principalmente, na escavação de minas.
Ele conta que, às vezes, ao iniciar um projeto, não tem certeza se ele será em cor ou em P&B, como aconteceu com Zeladores de Voduns do Benin ao Maranhão. “Quando fiz a primeira foto da série de um sacerdote lá no Benin, na África, e vi o resultado no monitor, a decisão foi imediata: o trabalho seria em cores saturadas e manteria a mesma luz, o mesmo enquadramento e o mesmo estilo em todos os retratos seguintes. Percebi ainda que a luz de lá era muita parecida com a do Maranhão”, lembra.
Gaúcho de Santo Ângelo vivendo na capital gaúcha, Tadeu Vilani diz que a fotografia colorida e o P&B sempre caminharam de mãos dadas, sem conflitos, em seu trabalho. Logo que começou ele escolheu o P&B como forma de expressão pessoal, deixando a cor para a atuação como fotojornalista. “A opção pelo preto e branco está ligada às memórias das imagens da infância, às poucas fotos guardadas em uma caixa. Cada vez que abria a caixa, havia o fascínio pelas fotos, pela textura do papel. Isso somado à televisão em preto e branco, os grandes filmes do neorrealismo italiano… Meus primeiros trabalhos foram com filmes Kodak Tri-x ISO 400 e, quando percebi, já fazia parte da forma de me expressar de maneira natural”, comenta.
Ele começou como laboratorista, revelando negativos e ampliando fotos. Considera essa sua grande escola, que o ensinou a enxergar a cena em P&B no momento que está fotografando e até qual será o resultado final.
As fortes cores do Holi
O ensaio colorido sobre o Holi, festival das cores realizado anualmente na Índia no dia do equinócio de primavera, foi editado especialmente por Tadeu Vilani para Fotografe a partir de fotos feitas em 2019. Vilani já havia realizado uma edição em P&B do mesmo material e seu desafio de traduzir um tema tão colorido para os tons de cinza foi resolvido dando destaque ao retrato. “Acredito ter facilidade para o retrato. Não estou dizendo que sou um bom retratista, apenas gosto de fazê-lo, olhar nos olhos do fotografado através da lente e imaginar quem é essa pessoa, pois dizem que os olhos são o espelho da alma. As fotos do Holi de que mais gosto são os retratos”, comenta Tadeu Vilani.
Quando editados em cor, os retratos ganham uma interpretação mais bem humorada e menos dramática, pois acrescentam a informação cromática à textura dos pós que cobrem os rostos, avalia Vilani. Essas imagens fazem parte de um projeto mais amplo de fotografar a Índia, iniciado em março de 2019, em viagem realizada em parceria com o amigo
e fotógrafo André Ávila.
Os dois planejaram juntos a jornada visando cobrir dois eventos de grande relevância no estado de Uttar Pradesh, o Kumbh Mela, na cidade de Allahabad, e o Holi, em Vrindavan e arredores. Após 30 dias fotografando na Índia, Vilani voltou seduzido e convencido de que o trabalho terá novos desdobramentos.
“Logicamente, o que me influenciou a ir à Índia, além de seu misticismo, foi o trabalho de outros fotógrafos que, de alguma forma, capturaram a alma, a magia do povo”, diz Vilani, citando o francês Henri Cartier-Bresson e, principalmente, o brasileiro Marcelo Buainain, que ele conheceu em um evento em Porto Alegre e com quem depois esteve por alguns dias na casa dele em Natal (RN). “Lá ele me apresentou os livros do fotógrafo indiano Raghu Hai, outra influência definitiva nesse projeto”, informa o fotógrafo gaúcho.
Ética e compromisso
Vilani atuou como fotojornalista do jornal gaúcho Zero Hora de 1996 até o início de 2020. Agora, passou a se dedicar exclusivamente ao trabalho pessoal, ajustou a câmera para visualizar as imagens no monitor em P&B, embora a captura seja feita em cor. Faz questão de ressaltar que não é a opção pela cor ou pelo P&B que faz a produção de um fotógrafo documental melhor ou pior, mas sim seu compromisso de vida e sua ética perante as pessoas e situações que fotografa. “Isso é o mais importante”, diz.
Ele ainda usa esporadicamente sua Nikon FM-2 com filme Kodak Tri-x, mas a câmera do dia a dia é uma DSLR Nikon D800 munida de uma lente 24-70 mm f/2.8, que destaca pela qualidade óptica, e uma 20-30 mm f/2.8. Geralmente, faz suas capturas em RAW e JPEG. Nas conversões para o P&B, usa o plug-in Silver Effex para dar um primeiro tratamento sutil e rápido, depois faz o acabamento no Photoshop.
Já Márcio Vasconcelos usa atualmente DSLRs Canon EOS Mark II e IV com as lentes 35 mm, 50 mm e 70-200 mm. Leva sempre consigo uma mirrorless Fuji X100s. Sua lente predileta é a 35 mm, que, segundo ele, já faz parte de seu corpo e de seu olhar. Ele gosta de se sentir dentro da cena, de se aproximar do assunto e das pessoas. Faz as capturas em RAW quando entende que será necessário ter um ajuste mais preciso na pós-produção.
Foi com a chegada do digital que passou a usar mais a cor. “Na época do analógico, fotografava muito em negativo P&B e em cromo. Tinha laboratório e eu mesmo revelava e fazia as ampliações. Com a chegada do digital, as cores ganharam mais espaço nos meus trabalhos, mas foi de uma forma natural e espontânea, nada programado, apenas decidia se determinado trabalho ficaria melhor em cor ou em P&B conforme o conceito e o estilo. Gosto muito dos dois formatos”, afirma.
Carga poética
Orlando Azevedo, que é próximo personagem na série Portfólio Fotografe, concorda com Márcio Vasconcelos quanto à definição da linguagem: o tema é fundamental para decidir se um trabalho será realizado em cor ou em P&B.
Autor de um projeto grandioso, intitulado Coração do Brasil, que gerou uma trilogia de livros de fotografia tanto em cor como em P&B, Azevedo acredita que é até possível mesclar os dois em um ensaio ou documentário, algo que deve ser feito com muito cuidado, se possível com a ajuda de um curador, para o conjunto não ficar desequilibrado ou parecendo um erro de edição.
“É preciso levar em conta que o preto e branco não tem pontos de fuga, que são evidentes na cor. Um ponto vermelho numa imagem pode ser muito chamativo. Aliás, as cores primárias (azul, vermelho e amarelo) em geral chamam a atenção. Para mim, há uma carga poética maior no preto e branco. Por isso, prefiro registrar a saga do ser humano, os retratos, o trabalho, as cena de rua, em preto e branco. A cor exige mais trabalho na composição, na busca de um ponto de interesse e no equilíbrio entre os tons quentes e frios”, ensina.
A cor demorou a se tornar popular
O filme colorido se tornou popular apenas a partir dos anos 1970 e teve reinado curto, pois a partir de 2005, com a consolidação da era digital, foi legado ao esquecimento. Desde a criação da fotografia, já se perseguia o objetivo de mostrar as cores do mundo. Nessa busca se destacaram nomes como James Clerk Maxwell, Thomas Sutton, Louis Ducos du Hauron, Sarah Angelina Acland e Sergey Prokudin-Gorsky.
Desses pioneiros da fotografia colorida, o escocês James Clerk Maxwell foi o mais genial. Cientista do século 19 com mais influência sobre a física do século 20, Maxwell direcionou suas pesquisas na percepção de cores pelo olho humano e inventou um filtro de cores triplo (que mais tarde resultaria no sistema RGB). Com base em estudos da visão humana e da óptica, concluiu que era possível produzir fotografia em cores sobrepondo três imagens obtidas com filtros vermelho, verde e azul. Para comprovar essa tese, exibiu em 1861, durante uma palestra, a primeira imagem colorida que se tem notícia, feita pelo fotógrafo inglês Thomas Sutton conforme suas orientações.
O francês Louis Ducos du Hauron (1837-1920) se dedicou à criação de formas práticas de produção de imagens coloridas com o uso de cores aditivas (vermelho, verde e azul) e subtrativas (ciano, magenta e amarelo). Patenteou os processos em 1868 e no ano seguinte publicou o estudo Les Couleurs en Photographie. Já as experiências da inglesa Sarah Angelina Acland (1849-1930) com fotografia colorida foram iniciadas em 1899. O trabalho inicial foi realizado usando o processo de Maxwell, porém mais evoluído, em que três imagens são captadas em separado com filtros vermelho, verde e azul e depois transformadas em uma só, colorida.
O russo Sergey Prokudin-Gorsky (1863-1944) fez estudos com cientistas de renome em São Petersburgo, Berlim e Paris para desenvolver técnicas para a fotografia colorida. Como resultado, conseguiu as primeiras patentes de filmes diapositivos coloridos. Essas pesquisas incentivaram os famosos irmãos Lumière, Auguste Marie (1862-1954) e Louis Jean (1864-1948), conhecidos como “os pais do cinema”, a lançar o primeiro filme colorido, o Autochrome, que chegou ao mercado em 1907.
O Autochrome se destacou como o principal processo de fotografia colorida no início do século 20 por ser o primeiro comercialmente viável. Mas o negócio dos irmãos Lumière começou a dar errado com o lançamento do primeiro filme colorido moderno, o Kodachrome, introduzido em 1935 pela Kodak em diversos formatos para fotografia e cinema (8 mm, 16 mm e 35 mm). Contudo, esse diapositivo usava o processo de revelação K-14, tão complexo que apenas 25 laboratórios no mundo eram capazes de fazer a revelação – o último foi o laboratório Dwayne’s Phot, no Kansas, EUA, que ofereceu o serviço até o final de 2010.
O passo fundamental para o início da popularização do filme colorido foi o lançamento do Kodacolor, em 1941, que, ao contrário do Kodachrome, era um negativo colorido de fácil processamento. O novo produto simplificou as ampliações em papel e reduziu o custo para o consumidor – mas ainda era bem mais caro se comparado com o P&B. Por isso, somente com a queda de preços do produto e dos serviços de laboratório nos anos 1970, aliada a uma melhoria na sensibilidade do negativo colorido, é que a cor foi ganhando cada vez mais espaço no mercado entre milhões de fotógrafos entusiastas mundo afora.