A fotografia documental tem como marca os projetos de longo prazo. Ela se diferencia do fotojornalismo pelo fato de envolver o aprofundamento em um tema e suas implicações sociais. Enquanto o fotojornalismo busca informar sobre os acontecimentos, com a rapidez exigida pela notícia, o documentário fotográfico permite buscar as razões e motivações por trás dos fatos.
Para o fotógrafo, crítico, professor e curador Juan Esteves, a grande referência desse campo é o americano Eugene Smith (1918-1978). “Quando penso em documental me vem de imediato Minamata, um trabalho extenso, engajado, que trouxe um resultado positivo. As imagens de Smith mudaram a vida daqueles pescadores japoneses. O engajamento foi tamanho que ele quase morreu por isso”, aponta.
Minamata é uma cidade japonesa que sofreu, a partir de meados da década de 1950, com a poluição gerada pela indústria química Chisso. A contaminação das águas com mercúrio descartado pela empresa causou uma série de problemas neurológicos irreversíveis em moradores da região, levando-os à paralisia e até à morte. A partir de 1971, Eugene Smith documentou a situação catastrófica e sofreu as consequências da atividade ao ser brutalmente espancado por capangas da Chisso em 1972, chegando quase a perder a visão do olho direito. Mesmo depois do ataque, ele permaneceu na região, até completar o livro Minamata, publicado em 1975.
Hoje, o Prêmio Eugene Smith, criado em 1980, é um dos maiores na área de fotografia documental, e a primeira a recebê-lo foi a franco-americana Jane Evelyn Atwood (veja mais sobre ela na edição 250 de Fotografe). Dois anos depois foi a vez de Sebastião Salgado, sem dúvida, a maior referência na fotografia documental brasileira. Salgado, economista de formação que migrou para a fotografia em 1974, desenvolveu grandes projetos ao longo dos últimos quarenta anos, sobre temas bastante vastos, como América Latina, o mundo do trabalho manual, as condições dos migrantes e, mais recentemente, sobre locais em que a natureza ainda se encontra em estado original, como a série que vem fazendo com populações indígenas na Amazônia.
Ética e financiamento
Todo projeto assumidamente documental envolve questões éticas cruciais. Acima de tudo, é preciso ser honesto com as pessoas fotografadas e com o público. A fotografia documental é uma troca. As pessoas fotografadas cedem suas imagens em prol de uma causa ou mesmo de interesses pessoais. Elas esperam que esse ato resulte na divulgação de suas histórias de vida a um público mais amplo, fortalecendo aspectos de sua cultura ou ajudando a transformar condições adversas.
Para criar uma relação de cumplicidade, é importante que se retorne para apresentar os resultados, ainda que parciais. É na relação entre o fotógrafo e o tema que se constrói um projeto consistente. Essa relação passa por um diálogo constante e sincero. Atualmente, as autorizações de uso de imagem se transformaram em item quase obrigatório na bagagem do documentarista.
Nessa área de atuação, o fotógrafo busca mostrar uma realidade em suas múltiplas facetas, mas isso não significa que seu papel se resuma a registrar os acontecimentos, sem nenhum tipo de interação ou participação. É uma ilusão querer acreditar nesse tipo de objetividade. Por um princípio ético, não se pode falsear a realidade, mas os bons projetos documentais são autorais, o que implica um grau de criação e de subjetividade.
Financiar projetos
O grande desafio dos projetos documentais de longo prazo está no financiamento. Quanto mais se estende no tempo e no espaço, mais oneroso. Ao desenvolver um projeto por conta própria, o fotógrafo estará livre das limitações criativas de um trabalho encomendado, porém vai esbarrar em limitações de ordem financeira. Por isso é necessário buscar o equilíbrio entre trabalho comercial e autoral.
O financiamento coletivo (crowdfunding) tornou-se uma realidade palpável em anos recentes, mas a prática mostra que apenas projetos com algum diferencial capaz de fisgar os potenciais “patrocinadores” conseguem obter os recursos. A rede de contatos do fotógrafo também conta muito nessa modalidade de financiamento.
Outra fonte de renda potencial está na inserção das fotografias no circuito das artes, que pode resultar na venda de obras a colecionadores ou interessados em geral. Também é importante ficar ligado em oportunidades de bolsas, concursos, premiações e editais. Há também a possibilidade de financiamento via leis de incentivo à cultura por meio de isenção fiscal. Nesses casos, a empresa que fará o aporte é que terá de ser “convencida” da importância do projeto.
Transformar um grande projeto em pautas pontuais para o mercado editorial é outra maneira de viabilizar sua realização. Mas Juan Esteves é taxativo ao apontar a diminuição do espaço editorial para as grandes reportagens na imprensa brasileira. “Matérias como a feita por José Medeiros sobre o Candomblé, publicada em 1951 na revista O Cruzeiro, com 42 imagens, nunca mais serão publicadas. Até os anos 1980, revistas no Brasil e no exterior ainda tinham grandes reportagens. Atualmente, uma matéria no Brasil e em algumas revistas do exterior tem no máximo de 8 a 10 fotos”, aponta.
Nos dias de hoje, uma alternativa são as plataformas digitais, que transformaram o jornalismo e abriram a possibilidade para publicação de grandes séries fotográficas sem limitação de espaço. A edição digital também trouxe novas ferramentas, como a possibilidade de editar ensaios no formato audiovisual. O problema é que, na média, paga-se pouco pelo trabalho do fotógrafo.
Com dinheiro do governo
Do ponto de vista histórico, a utilização da fotografia documental foi marcada pela subvenção estatal ou pela viabilidade comercial do tema tratado. Uma das primeiras iniciativas nesse sentido foi a Missão Heliográfica, bancada pelo governo da França, que escalou fotógrafos para realizar um levantamento de 175 edifícios considerados patrimônio histórico nacional, no ano 1851. No Brasil, Marc Ferrez (1843-1923) se destacou como documentarista de obras realizadas pelo poder público entre o final do século 19 e o início do século 20, como a construção de ferrovias e as reformas modernizadoras realizadas pelo prefeito Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro.
A fotografia documental também serviu como instrumento de denúncia e como indutora de mudanças. Exemplos disso são os trabalhos de Jacob Riis (1849-1914) e Lewis Hine (1874-1940), cuja documentação das condições de vida da classe trabalhadora nos Estados Unidos levou a avanços decisivos na legislação trabalhista. As obras desses dois fotógrafos influenciaram a realização do mais ousado projeto documental subvencionado pelo poder público na história da fotografia, realizado pela Farm Security Administration (FSA) nos Estados Unidos, entre 1935 e 1942, visando fazer um diagnóstico sobre as condições precárias da vida na zona rural do país após a Grande Depressão (confira o trabalho de Dorothea na pág. 64).
A fotografia documental ganhou enorme impulso com o surgimento das revistas ilustradas, cujo principal modelo foi a americana Life, a partir da reforma no projeto editorial realizada por Henry Luce em 1936. As fotos ganharam então um status equivalente ao do texto e teve início ali a utilização sistemática de narrativas fotográficas pela imprensa. Poucos anos depois, já na década de 1940, o surgimento da Magnum, agência de fotógrafos independentes em busca de desenvolver suas próprias histórias, como Henri Cartier-Bresson e Robert Capa, foi outro marco no setor. Desde sua fundação em 1947, a Magnum segue sendo a principal referência no universo da fotografia documental.
O documentário fotográfico adentrou o ambiente das artes também na década de 1940, com a fundação do Departamento de Fotografia do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, que desde o início incorporou ao seu acervo obras desse gênero. Basta frequentar uma edição da Bienal de São Paulo ou de Veneza para verificar que os trabalhos documentais seguem em voga na arte contemporânea.
Ir fundo no assunto
Os projetos documentais de longa duração também se diferem das grandes reportagens, que permitem uma cobertura mais cuidadosa e adensada, fugindo ao hard news, mas ainda estão no campo do fotojornalismo, pois resultam em pautas específicas e bem circunscritas no tempo e no espaço. Para Juan Esteves, fotojornalismo e fotografia documental são diferentes, mas não excludentes. “A principal preocupação do fotojornalista é com a notícia, ele tem que passar para um público específico o que está vendo e traduzir o fato em imagens o quanto antes e, se possível, de uma maneira isenta. O documentarista tem um trabalho mais engajado, que representa a vontade do autor em discutir algum tema. Exige muito mais pesquisa e dedicação do fotógrafo”, compara.
O documentário fotográfico funciona por meio do acúmulo e do desdobramento de um grande tema em várias abordagens. Para tanto, é necessário deixar o tempo passar e voltar ao mesmo lugar mais de uma vez, em diferentes ocasiões. Só assim é possível captar as transformações daquilo que se está fotografando. Outro tipo de abordagem pode ser realizado por meio de uma variação espacial: visitar lugares diferentes onde ocorrem fenômenos da mesma natureza, registrando a variedade de expressões daquele tema.
Seja qual for a abordagem escolhida, todo projeto documental funciona de maneira cíclica. O momento da pré-produção, que envolve pesquisa e planejamento, é fundamental para garantir o sucesso do trabalho em campo. Depois de capturar as imagens, chega o momento da pós-produção, que consiste no tratamento e na edição do material. Realizado o percurso que vai da pré até a pós-produção, é possível avaliar os resultados parciais, e essa avaliação será decisiva para definir os próximos desdobramentos. A ideia inicial vai se transformando nesse percurso e o projeto ganha corpo, como pode ser visto nos trabalhos do paulista José Bassit, da gaúcha Mirian Fitchner e do pernambucano Elias de Oliveira, mostrados nas páginas seguintes.