A pandemia do novo coronavírus vem espalhando desespero, dor, medo e mortes pelo mundo. China, Europa, Estados Unidos e depois o Brasil se tornaram epicentros da doença sucessivamente, a partir de seu surgimento, em dezembro de 2019. O impacto é sentido com maior intensidade por aqueles que não têm meios de se manter em isolamento social e pelos profissionais que atuam na chamada “linha de frente” dessa guerra contra um inimigo invisível e letal, caso dos fotojornalistas, que estão mais expostos à infecção, assim como médicos, enfermeiros e trabalhadores de serviços essenciais.
Fotografe entrevistou seis profissionais que atuam na “trincheira”, em diferentes pontos críticos, e todos concordam que estão diante de uma cobertura histórica, o maior desafio enfrentado por eles na carreira para produzir imagens necessárias para informação e documentação, mas que será uma eterna e dolorosa lembrança.
O papel de fotojornalistas e jornalistas na linha de frente é fundamental para informar a população. Contudo, além de registrar os fatos, eles também sofrem ao testemunhar a realidade diante de seus olhos. Os momentos mais dramáticos da cobertura são os de contato direto com os doentes e seus familiares, o que envolve o acompanhamento de perto de outros profissionais. “As pautas me deram a oportunidade de estar com várias pessoas que atuam na linha de frente, como coveiros, bombeiros, enfermeiros, médicos, garis, entre outros. Pude perceber a coragem que cada um tem de ajudar o próximo, mesmo sabendo que também estão correndo risco e que cada um tem seus familiares em casa para proteger e cuidar”, ressalta Werther Santana, 39 anos, fotógrafo do jornal O Estado de S.Paulo, que nasceu e vive em São Paulo (SP), epicentro da pandemia no Brasil.
Bruno Kelly, 36 anos, é natural de São José dos Campos (SP) e vive desde 2009 em Manaus (AM), onde trabalha como freelancer, colaborando principalmente com a agência Reuters (desde 2012) e com o jornal Folha de S.Paulo. Dentre os personagens que acompanhou de perto na capital amazonense, um dos principais focos de mortes por covid-19 no País, Kelly destaca duas mulheres. Primeiro, Vanda Ortega, técnica de enfermagem indígena da etnia Witoto, que tem ajudado moradores da comunidade Parque das Tribos, onde vive. Ela transportou diversos pacientes graves no próprio carro e tem sido uma guerreira na batalha por recursos e atenção das entidades governamentais. Outra personagem marcante, segundo ele, é Alessandra Said, médica que trabalha no SAMU de Manaus e que tem encarado plantões intensos na ambulância de pronto atendimento pelas ruas da cidade e ainda encontra forças para cuidar dos pais, que, mesmo isolados, acabaram contraindo a covid-19, além do desafio de estar longe da filha, que foi morar na casa do pai por conta do trabalho dela.
O carioca Felipe Dana, 34 anos, é membro da agência Associated Press (AP) e estava no Oriente Médio cobrindo conflitos na Síria e na Turquia quando a epidemia surgiu. Quando o epicentro se moveu da China para a Europa, ele foi para a Espanha, um dos países mais afetados. Com a estabilização da situação espanhola, transferiu-se para Manaus – onde se encontrava no momento desta entrevista. Com experiência na cobertura de conflitos e acostumado a situações de tensão, ainda assim ele considera que a cobertura da pandemia tem sido muito difícil e complexa. “Lidar o tempo todo com um risco que não é visível é extremamente complicado e estressante. Mesmo tomando todos os cuidados, você está o tempo todo na rua e exposto”, relata. Dana estava documentando o drama de pessoas que morrem em suas casas em Manaus, muitas delas por medo de ir ao hospital, outras por demora no atendimento. “Acompanhar as famílias nesses momentos, na constatação do óbito ou na retirada do corpo, é sempre muito difícil para mim”, declara.
Narrativa de dramas
O casal de brasileiros, Vanessa Carvalho e William Volcov, ambos de 35 anos, vive em Nova York, epicentro do novo coronavírus nos Estados Unidos. Os dois atuam como colaboradores da Brazil Photo Press, de outras agências e do jornal New York Post. Na visão deles, o maior impacto foi ver as ruas da mais famosa metrópole do mundo quase desertas durante a quarentena em contraste com o movimento frenético de ambulâncias nas portas dos hospitais. “O primeiro momento a me impressionar foi testemunhar que a Times Square, no coração da cidade, estava deserta como em um filme sobre o fim do mundo. Às vezes, era possível até ver algumas pessoas caminhando com máscaras de proteção, carregando álcool em gel e com expressão assustada. Nos hospitais, fui acompanhar a rotina e vi muitos corpos dentro de sacos sendo colocados por guindaste dentro de caminhões frigoríficos”, relata a fotógrafa.
Vanessa e Volcov também estão vivendo em dobro o drama do distanciamento, pois os familiares de ambos vivem no Brasil. Vanessa perdeu a avó durante a pandemia. Por conta das restrições de viagem e dos muitos voos cancelados, não conseguiu voar para São Paulo para se despedir. Volcov perdeu um colega americano, Anthony Causi, que morreu aos 48 anos após contrair a covid-19 quando fotografava para o jornal New York Post.
Bruna Prado, 42 anos, é carioca e vive no Rio de Janeiro (RJ), onde faz a cobertura da pandemia para a agência Getty Images. Ela também teve conhecidos que contraíram o vírus e adoeceram. O caso mais grave foi o de uma vizinha de andar no prédio, que trabalha como maqueira e estava atuando na linha de frente. Após passar por uma internação, ela se curou e voltou para a casa. “Alguns dias depois que recebeu alta, foi aniversário da companheira dela, então eu deixei de ser fotojornalista para fazer fotografia de família na porta da casa delas, nesse momento de celebração da vida”, ressalta Prado. Outra preocupação da fotógrafa são as pessoas que enfrentam dificuldade em sobreviver com a diminuição da atividade comercial. “Atualmente no Rio, pessoas e até famílias inteiras estão perdendo seus lares por falta de recursos e indo morar nas ruas. Outras ainda têm moradia, mas saem às ruas com os filhos em busca de alimentos doados por não terem mais trabalho, já que a grande maioria é informal”, aponta.
Bruno Kelly conta que vários amigos contraíram a covid-19, mas nenhum deles teve complicações. Ainda assim, a cobertura tem sido extremamente desgastante do ponto de vista emocional. “É uma tragédia sem fim. Tenho que confessar que em diversas situações fotografei com lágrimas nos olhos e, em alguns casos, até não consegui fotografar por muito tempo, como em um atendimento do SAMU, em que o paciente chegou muito mal a uma base de atendimento e, mesmo com várias tentativas de reanimá-lo, acabou morrendo, isso tudo na frente dos familiares. Foi uma das piores situações pela qual já passei”, descreve Kelly.
Antes de vir da Espanha para o Brasil, Felipe Dana testou positivo para o novo coronavírus, com presença de anticorpos da classe IgG, que indica que a pessoa testada foi infectada no passado e provavelmente desenvolveu imunidade contra a doença. Dana conta que sua avó, que vive no Rio de Janeiro, também se infectou e foi internada em um hospital. Seu quadro melhorou e ela estava em observação no momento em que ele foi entrevistado.
Proteção e cuidados
Um dos principais desafios da cobertura da pandemia é manter a segurança. A sensação de alerta é permanente. O uso dos equipamentos de proteção individual, os EPIs, a limpeza constante das mãos, das roupas e do equipamento se transformaram em procedimentos obrigatórios, que aumentam o estresse e a intensidade do trabalho. Bruna Prado, por exemplo, conta que criou um protocolo de higienização que segue estritamente desde o início da cobertura. A fotógrafa escolheu três conjuntos de roupas que usa para trabalho, leves e de fácil limpeza. Ao longo do dia, a higienização das mãos e do equipamento é constante, com uso de álcool 70%.
Quando ela volta para casa, o procedimento de limpeza pode levar de 30 a 60 minutos. Os sapatos ficam em uma bacia do lado de fora. A área de serviço transformou-se em uma “área suja”, onde estão concentrados os itens usados no trabalho. “Quando saio já deixo um balde cheio de água para colocar a roupa que uso no dia a dia e tomo banho antes de acessar as outras áreas da casa. Em duas bacias grandes, coloco todas as bolsas e equipamentos. Limpo as bolsas com desinfetante Lysoform e o equipamento é todo higienizado com álcool isopropílico, peça por peça. Nada disso sai mais da ‘área suja’, que também passa por limpeza após todo esse processo inicial”, explica ela.
Bruno Kelly, além dos EPIs básicos, luvas, máscara e óculos, usa também macacão, já que a cobertura envolve presença constante em hospitais e no cemitério Nossa Senhora Aparecida, onde têm sido realizados enterros coletivos em Manaus. Felipe Dana é outro que utiliza EPI completo. Ele sai a campo literalmente coberto da cabeça aos pés.
Werther Santana vai trabalhar com o próprio carro em São Paulo. Ele utiliza duas camadas de roupas e, ao retornar para casa, faz uma higienização completa do equipamento ainda no carro. Tira a camisa, a calça e coloca em uma sacola, sempre borrifando tudo com cloro e água. Sobe para o apartamento de short e camiseta, deixa os sapatos do lado de e vai direto para o banho. Ele conta que o momento mais difícil na cobertura foi quando passou o dia no interior de uma UTI, acompanhado a chegada de pacientes críticos e a atuação de médicos e enfermeiros. “Nesse dia, usei três camadas de roupas. Ao voltar para casa, joguei fora a calça, a bermuda, uma blusa e uma camisa, ficando somente de short e camiseta regata. O tênis foi limpo com bastante cloro e ficou mais de três dias embaixo do assento do carro para que não tivesse qualquer possibilidade de vestígio do vírus”, relata.
Os fotógrafos entrevistados que atuam no Brasil receberam os EPIs das agências e dos veículos de imprensa para o qual trabalham, enquanto Vanessa Carvalho e William Volcov, que atuam de forma independente em Nova York, adquiriram seus próprios equipamentos.
Lições da pandemia
A pandemia do novo coronavírus ainda está distante de ser superada, mas seus efeitos começam a ser contabilizados e compreendidos. Para Bruno Kelly, os desdobramentos têm sido particularmente catastróficos para a região amazônica. “Eu sinceramente tenho mais dúvidas do que certezas, ou nenhuma certeza, para dizer a verdade. Espero realmente que essa situação desperte na sociedade algo positivo. A Amazônia está sendo dizimada, seus povos, a floresta, os animais, isso tudo em troca de quê? Que seja um momento de muita reflexão para todos”, pondera.
Na visão de Bruna Prado, o mundo que existia antes da pandemia mudou de forma radical, principalmente no plano dos afetos, já que a necessidade de isolamento social resulta na diminuição do contato físico entre as pessoas, particularmente difícil de enfrentar em uma sociedade tão afetuosa como a brasileira. “Diante dessa tragédia, temos a oportunidade e a possibilidade de repensar nossas relações, nossas atitudes e tudo aquilo que realmente tem valor em nossa vida. Por outro lado, a pandemia escancarou posturas políticas, econômicas e sociais graves e nocivas para a vida de toda a sociedade e inclusive para o planeta. O futuro depende do que vamos fazer com tudo isso, depende de qual caminho vamos preferir seguir”, aponta.
Muito ativo em lives e produções de vídeo no Instagram, William Volcov manteve seus 60 mil seguidores bem informados sobre a crise em Nova York, que chegou a ser epicentro mundial do novo coronavírus. Ele também fez merecidas críticas à atuação do governador do estado, Andrew Cuomo, e tem se mostrado bastante preocupado com as pessoas que “estão perdendo o medo” da covid-19. Mesmo se dizendo otimista, depois de três meses de cobertura da pandemia, Volcov prefere ser realista. “Não vamos superar isso tão cedo. Não vejo a hora disso acabar, mas vai demorar. O ideal seria dar sempre notícias boas, mas o mundo não é um conto de fadas. Por mais difícil que seja, o importante é ser transparente. Além disso, nós não escolhemos a notícia, ela nos escolhe”, comenta.