Zoológico de Belo Horizonte (MG), meio-dia e meia. O forte calor daquela sexta- -feira de verão, 25 de janeiro, gerou um fato inusitado. Funcionários do zoo estavam dando picolés aos chimpanzés. O fotojornalista Douglas Magno fazia a cobertura da pauta para a Agência France Press (AFP) quando foi surpreendido por uma avalanche de mensagens no WhatsApp. Um telefonema de uma tia interrompeu o trabalho. Ela estava com uma amiga cujo filho trabalhava na Vale e tinha uma notícia terrível para dar: uma barragem de rejeitos de mineração havia rompido em Brumadinho (MG), a 60 km da capital mineira, e parecia que era algo muito grave.
Douglas ligou no mesmo momento para a redação da AFP e partiu para o local. Graças aos contatos que tem no Corpo de Bombeiros, soube no caminho da gravidade da situação e que era alto o número de vítimas. Ao chegar a uma estrada fechada pela lama, já era possível ver alguns helicópteros que sobrevoavam a região. Douglas ligou novamente para a redação e pediu um helicóptero, no que foi prontamente atendido. Por volta das 16h, levantava voo para registrar imagens aéreas do alto do terrível rastro de destruição deixado pelo rompimento da barragem da Vale que despejou toneladas de lama densa sobre o refeitório, onde dezenas de funcionários almoçavam, e outras instalações adjacentes, sem dar qualquer chance de escapatória às pessoas.
Era uma tragédia que se repetia, um filme de horror que Douglas havia fotografado em 2015, quando rompeu a barragem de rejeitos do Funil, em Mariana (MG), esta sob responsabilidade da Samarco, propriedade da Vale e da australiana BHP. Na ocasião, o crime ambiental teve proporções maiores do que o humano. Dessa vez, foi o contrário.
FOTOS E VÍDEO
“De cima, dava para ter a dimensão do acidente. O volume de lama era muito menor do que em Mariana. Mas pelo rádio a gente ouvia as mensagens dos outros helicópteros e logo percebemos a gravidade do que tinha acontecido. Foi dito que lá embaixo havia um refeitório e já tinha começado a retirada de corpos e de sobreviventes. Dava para ver o poder daquela torrente pelos eixos retorcidos do trem de ferro. A locomotiva foi arrastada como se fosse de papel. Várias casas do vilarejo abaixo foram atingidas, principalmente na beira do córrego do Feijão, onde estava a Pousada Nova Estância, que foi completamente tragada”, conta Douglas.
Ainda do helicóptero ele enviou as primeiras fotos e um vídeo gravado com o celular para a AFP. Depois voltou para casa em Belo Horizonte, editou o material completo em alta resolução e descansou um pouco para o dia seguinte. Seu impacto seria ainda maior ao chegar de manhã no vilarejo próximo à barragem.
O campinho de futebol ao lado da igreja havia se transformado em heliporto. A própria igreja fazia as vezes de posto avançado do Corpo de Bombeiros. “Esse foi o momento que mais me marcou”, lembra. “Corpos chegavam pendurados na rede. Nesse dia chegou a ter 16 helicópteros sobrevoando ao mesmo tempo. Eram muitos corpos, chegando a 20, 30 metros de onde eu estava. Cada corpo que chegava, a multidão de parentes e amigos das vítimas corria para a grade para o reconhecimento. Muitas vezes chegavam apenas pedaços, um quadril, um fêmur, um braço. Uma hora foram puxar um corpo e o braço soltou”.
ONDA MIDIÁTICA
Uma enorme onda de jornalistas de diversas partes e veículos inundou a região de Brumadinho no dia seguinte ao ocorrido. A conexão à internet, já bastante fraca na zona rural próxima ao Córrego do Feijão, ficou congestionada. O trânsito de jornalistas tornou-se intenso, no vai e vem entre o local da tragédia e a busca de um lugar propício para envio das imagens. Os profissionais baseados em Belo Horizonte faziam bate e volta todos os dias. Os vindos de outras partes tiveram dificuldade para conseguir hospedagem na região.
A ligação entre o centro de Brumadinho e as minas da Vale foi obstruída pela lama. Do lado da cidade, casas foram atingidas no bairro Parque das Cachoeiras. Porém, o local mais fortemente atingido estava do outro lado. Foram montadas estruturas dos dois lados, o que obrigava os fotojornalistas a idas e vindas constantes.
Os corpos chegavam na base próxima ao Córrego do Feijão, enquanto a parte administrativa da Vale estava no centro de Brumadinho. A cidade foi tomada pelo luto, pois a grande maioria dos moradores tem algum tipo de parentesco ou amizade com pessoas mortas na tragédia. Por isso havia muita pauta.
Douglas Magno conta que as estruturas montadas no local para atender à imprensa e principalmente a atitude dos bombeiros com os jornalistas foi bastante profissional. “Houve até uma certa cumplicidade entre bombeiros e imprensa. Eles entenderam a importância do nosso trabalho e fizeram de tudo, na medida do possível, para que a gente pudesse documentar o que tinha acontecido”, destaca o repórter fotográfico.
Ele informa que o clima se deteriorou ao longo da primeira semana, à medida que os familiares das vítimas foram passando do choque à indignação. A lama foi se solidificando e com ela se apagavam as esperanças de encontrar mais sobreviventes. Acima, o resgate de um corpo mostra a dificuldade para fazer buscas e resgates em Brumadinho; abaixo, série de retratos com alguns dos homens do Corpo de Bombeiros de Minas, trabalho diferenciado feito pelo fotojornalista Douglas Magno Diferente de um terremoto, que causa desmoronamento e gera situações em que muitos sobreviventes ficam presos sob os escombros, a força da densa lama de Brumadinho literalmente carregou e encobriu tudo o que encontrou pela frente.
A dificuldade e o enorme perigo de se movimentar sobre a lama tornavam difíceis as abordagens por terra. Por questões de segurança, os bombeiros estabeleceram limites para a ação dos fotógrafos, pois em muitos pontos uma cisterna ou um buraco fundo poderiam estar escamoteados e qualquer passo em falso poderia ser fatal. As operações de salvamento ficaram conhecidas pelo movimento de bombeiros que se deitavam na lama para melhor espalhar o peso do corpo e assim evitar o afundamento.
IMAGENS EXCLUSIVAS
A partir do domingo, dia 27 de janeiro, o espaço aéreo foi fechado para drones e helicópteros que não fizessem parte dos trabalhos de resgate. Com isso, os fotojornalistas tiveram que usar a criatividade. Foi nesse contexto que Douglas Magno conseguiu algumas imagens exclusivas.
Naquele mesmo domingo, ele estava no estádio Mineirão, cobrindo uma partida entre Cruzeiro e Atlético Mineiro, quando recebeu mensagens de um bombeiro dizendo que havia espaço para um jornalista em um helicóptero de resgate. “Fui imediatamente para o local e consegui voar com os bombeiros. Vi muitos corpos nesse dia. A lama estava baixando e alguns corpos começavam a boiar. Tinha bombeiros sujos de lama até o pescoço.
Eles utilizavam canos PVC para marcar o local onde haviam encontrado corpos. Cachorros ajudavam na busca”, recorda ele. Foi dessa missão que saíram as fotos estampadas nas capas do jornal The New York Times e da revista semanal IstoÉ. Dois dias depois, quando começaram os enterros coletivos nos cemitérios da região, Douglas conseguiu obter outra imagem marcante. “Não queria fotos que expusessem os parentes das vítimas. Eles já estavam em um estado de sofrimento muito grande. Então me veio a ideia de fazer a imagem do alto, dando uma dimensão da tragédia pelo número de covas abertas para o enterro”, relata o fotojornalista.
Ele estava no cemitério Parque das Rosas, a uma certa distância do local onde a barragem rompeu, fora da área cujo espaço aéreo estava fechado. Por isso pôde usar o drone para capatar a cena do alto, que saiu estampada na capa do jornal Super Notícia, de Belo Horizonte, e do suplemento “Ilustríssima”, da Folha de S. Paulo. Houve relatos de dois casos de fotógrafos que foram detidos pela polícia utilizando drones em área proibida.
Outro voo marcante realizado por Douglas Magno com as equipes de resgate se deu no dia 4 de fevereiro, dez dias após a catástrofe. A lama já estava bem mais sólida. Dali resultou uma matéria para o site El País que relata, por meio de fotos e legendas, como estava sendo feito o trabalho de busca dos bombeiros. “Os helicópteros pousavam levantando uma poeira espessa de resíduos de minério. Aquele barulho ensurdecedor, misturado com a devastação, causava a impressão de um verdadeiro cenário de guerra”, descreve.
No momento em que esta matéria estava sendo editada, na segunda semana de março, as buscas seguiam em curso. O número de óbitos confirmados era de 207 e de desaparecidos era de 101, segundo a Defesa Civil de Minas Gerais.
ALEX E LAMA TÓXICA
Alex de Jesus, fotógrafo do jornal O Tempo, de Belo Horizonte, estava saindo da redação quando chegou a informação do rompimento da barragem. Ele foi imediatamente escalado para cobrir o evento, junto com a repórter Mariana Nogueira. Os dois partiram de carro para Brumadinho e inicialmente chegaram pelo centro da cidade, na região menos afetada. Dali fizeram a volta e chegaram ao Córrego do Feijão no momento em que as buscas por sobreviventes estavam no auge.
No vilarejo abaixo das instalações da Vale, que foi bastante afetado pela lama, a dupla de reportagem recolheu algumas histórias impressionantes ao longo dos dias seguintes. Kelly Aparecida Pinto de Souza, de 19 anos, estava com o filho de 7 meses no colo quando a lama invadiu sua casa. Sob o impacto, ela deixou o menino cair e ele conseguiu escapar por pouco. Foi encontrado pelos familiares dando gargalhadas. Já Wilson Francelino Caetano, morador de Nova Lima (MG), não teve a mesma sorte. Ele voltava todos os dias ao local em busca do filho “vivo ou morto” e passava horas olhando desolado para a lama, na esperança de alguma notícia.
Alex saía de madrugada e voltava no fim da tarde para Belo Horizonte, diariamente, sempre acompanhado de um repórter de texto. As refeições eram feitas na base montada próxima ao Córrego do Feijão, onde era preparado um almoço comunitário. Desde o primeiro momento ficou proibido o consumo de água do local, mas as doações de água e alimentos vieram em número tão grande que foi necessário pedir que parassem de doar por falta de locais para estocar.
Refeições realizadas fora da base, onde se cozinhava com água mineral, não eram recomendadas e muitas vezes os fotojornalistas tinham de passar o dia à base de alimentos industrializados, como barrinhas de cereal ou lanches levados de casa, por falta de tempo e disponibilidade para almoçar. A eles também foi oferecido cloridrato de doxiciclina, medicamento contra doenças que poderiam ser contraídas pelo contato com a lama. O remédio, no entanto, produziu efeitos colaterais em algumas pessoas, como ânsias e dores de cabeça. Por essa razão, Alex optou por não tomar. A partir do dia 17 de fevereiro, ele parou de ir a Brumadinho por causa de uma série de sintomas que provavelmente se deviam ao contato com a lama: febre, dor de cabeça e reações alérgicas na pele.
O fotojornalista lembra que, no início, o contato com os parentes das vítimas era constante, mas a Vale foi retirando essas pessoas aos poucos e levando para hotéis fora da região. Atualmente, a maioria dos familiares de vítimas está inacessível à imprensa. O local das buscas também foi fechado e só pode ser acessado com autorização prévia. Medidas foram tomadas para evitar a exposição dos corpos, e foi criada uma área de desintoxicação, para que os bombeiros se lavem após as buscas.
IGO E OS DRAMAS PESSOAIS
Igo Estrela, fotógrafo do portal Metrópoles, de Brasília (DF), foi outro profissional a se destacar na cobertura do rompimento da barragem. Ele chegou no dia seguinte ao ocorrido, acompanhado da repórter de texto Mirelle Pinheiro.
Os dois ficaram ao todo 14 dias na região. Nesse período, rodaram 2.000 km com o carro alugado no aeroporto em Belo Horizonte. Nos primeiros dias, se hospedaram em Betim, região metropolitana da capital. Depois, conseguiram vaga em uma pousada no distrito de Casa Branca, próximo ao vilarejo do Córrego do Feijão. Os primeiros dias da cobertura se concentraram entre a região do desastre e o centro de Brumadinho. Nos dois dias seguintes ao rompimento, Igo teve a sorte de poder ajudar nas buscas e ainda fazer imagens exclusivas. Ao chegar ao local com seu drone foi solicitado por um tenente do Exército para ajudar a localizar sinais de sobreviventes. O drone foi pilotado sob coordenação do tenente e por isso pôde voar.
Igo foi um dos primeiros a avistar e registrar a chegada dos soldados israelenses, no dia 28 de setembro. No dia seguinte, ele e Mirelle Pinheiro relataram em notícia os desentendimentos criados pela chegada dos estrangeiros, munidos de um equipamento para localização de sobreviventes que não tinha serventia para aquele tipo de ocorrência.
Passados os primeiros dias de resgate, a dupla saiu em busca de histórias de personagens que viveram o drama. Foram até a aldeia indígena Naô Xohã às margens do Rio Paraopeba, em São Joaquim (MG), e lá constataram que os peixes estavam morrendo intoxicados com a lama, afetando o principal meio de subsistência da comunidade.
No dia seguinte, fizeram uma matéria com o padre Renê Lopes, da paróquia de São Sebastião, em Brumadinho, personagem bastante engajado e conhecido na comunidade. Também descobriram que entre os mortos estava um brasiliense, Alano Teixeira, engenheiro prestes a comemorar os 40 anos de idade, e relataram a história dele.
Dentre os dramas pessoais reportados, Igo Estrela se recorda com maior impacto o de Ronaldo Aparecido dos Santos, motorista de caminhão que trabalhava na mina e estava a cerca de 100 metros da barragem quando tudo aconteceu. Ele ainda tentou passar uma mensagem de rádio aos colegas, mas o sinal já estava cortado. Seu irmão, Rogério Antônio dos Santos, trabalhava na oficina da Vale e foi soterrado. “A perseverança dele em encontrar o corpo do irmão me marcou demais”, conta Igo.
NEREU E A VONTADE DO CIDADÃO
Nereu Jr. é fotojornalista freelancer e trabalha com eventos. Baseado em Belo Horizonte, ele estava muito próximo de Brumadinho no momento da tragédia. Fazia a cobertura de um encontro para a formação de líderes, em outra mineradora. O evento acabara de terminar quando ficou sabendo do desastre. Partiu para o local ao lado do amigo Claudio Cunha, também fotógrafo, com quem forma uma dupla quase inseparável.
Logo que chegaram, Nereu encontrou Leo Drummond, fotógrafo da agência mineira Nitro, e passou a integrar o time dele na cobertura. Mas seu interesse no assunto era sobretudo pessoal e cívico. Em 2017, ele se formou na Pós-Graduação em Fotografia e Imagem em Movimento da Universidade Positivo, em Curitiba (PR), com um trabalho de conclusão de curso sobre o desastre de Mariana, orientado por Tibério França.
A escolha do tema não foi fortuita. Nereu havia trabalhado para a mineradora Samarco em 2011, quando visitou o distrito de Paracatu de Baixo, em Mariana, para registrar ações sociais. O local foi quase que completamente dizimado pelo rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, em novembro de 2015. O fotógrafo decidiu então retornar ao distrito e ali encontrou as ruínas da destruição, “uma espécie de museu trágico”, em suas palavras.
A intenção de Nereu Jr. agora é acompanhar os desdobramentos da história de Brumadinho pelos próximos anos. “Meu trabalho não tem patrocínio. Nasce de uma vontade de cidadão, de tentar fazer a diferença. Não posso ficar parado se tenho condições de contar essa história. Vejo que só agora, passado um mês, as pessoas começam a entender o que aconteceu. Por tudo que ouvi acredito que o número de mortos deva ser bem maior do que está sendo estimado”, adverte.
“Percebo que a Vale elaborou uma cartilha muito bem amarrada de gerenciamento de crise depois do que aconteceu em Mariana. A imprensa não tem acesso aos familiares das vítimas e agora também o acesso ao local das buscas está controlado. A situação é muito triste, pois a empresa tenta vencer pelo cansaço e pela desinformação”, desabafa Nereu.
Depois do ocorrido em Brumadinho, diversas comunidades próximas a barragens de rejeitos de mineração vivem sob constante suspense. No dia 8 de fevereiro, moradores das cidades mineiras de Barão de Cocais e Itatiaiuçu foram retirados de suas casas por risco de colapso de barragens das mineradoras Vale e ArcelorMittal.
Em um cenário como esse, iniciativas como a do fotógrafo Nereu Jr. são de grande importância, pois ajudam a narrar os fatos do ponto de vista dos afetados e apontam para além da cobertura do fato em si, em busca de seus desdobramentos.