A fotografia autoral é um tipo de criação que envolve implicação afetiva com o tema e a busca por uma expressão pessoal. É um caminho longo e tortuoso que exige investimento de tempo e de energias criativas. Por isso, muitas vezes os projetos autorais levam anos de depuração e maturação até que estejam prontos para ganharem o mundo, na forma de obras, de um livro ou de uma exposição.
Ainda que seja uma criação pessoal, a fotografia autoral não é destituída de contexto. Ao contrário: para que um trabalho ganhe repercussão é preciso que ele dialogue com outras referências do mesmo campo e que também esteja inserido nas grandes questões e temáticas em debate na sociedade contemporânea. Por isso a pesquisa é tão importante quanto a experimentação.
Segundo a visão do fotógrafo Eder Chiodetto, um dos principais curadores em atividade no Brasil, a produção autoral envolve três aspectos fundamentais. “O desenvolvimento dessa narrativa visual autoral se dá pela sobreposição de um processo de autoconhecimento, de um estudo aprofundado sobre as possibilidades semânticas da linguagem ao longo de sua história e, por último, de uma intimidade com os temas a serem investigados”, indica ele, que começou a pensar em atuar em curadoria depois de uma dica da renomada fotógrafa americana Susan Meiselas (veja box).
Pedro Karp Vasquez, que se assume como fotógrafo-autor desde o início dos anos 1970, traça uma distinção entre autoral e documental, aprendida com o americano Duane Michals em um workshop realizado no festival Rencontres d’Arles, na França. Enquanto o autor “faz” imagens, o documentarista “registra” fotos. Em um paralelo com a literatura, o equivalente seriam os campos da ficção e da não ficção, ambos englobando uma série de gêneros, como poesia, conto, romance, novela, ensaio.
Contudo, para Vasquez (que também é curador) não existe hierarquia. “Alguns tendem a situar a fotografia autoral em um patamar superior à documental. Isso é completamente falso. Nem a primeira é melhor do que a segunda nem a segunda é superior à primeira, cada qual tem seu valor específico, inclusive, ganha muito em profundidade e interesse quando os respectivos campos e fazeres se misturam e se confundem”, aponta.
Duas visões do sertão
A fotografia é um tipo de mídia que proporciona um encontro e uma interação imediata com o real. Por isso a escolha dos temas costuma ter grande relevância na criação fotográfica autoral. Para que o trabalho tenha força, ele precisa nascer de uma relação afetiva e efetiva do fotógrafo com seu tema. Um dos grandes nomes que emergiram a partir da década de 1980, com as Semanas Nacionais de Fotografia promovidas pela Funarte, Tiago Santana tem como temática central de sua obra o sertão, a região do semiárido do Nordeste brasileiro. O epicentro de onde irradia seu trabalho é a cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, vizinha a Crato, onde ele nasceu e cresceu.
“Tornei-me fotógrafo por conta do impacto desse lugar na minha vida e na minha formação. Juazeiro do Norte é uma das maiores referências dentre as manifestações populares religiosas no Brasil e um berço da cultura popular. A minha decisão em ser fotógrafo passou pelo desejo de fazer uma documentação pessoal sobre esse universo e minha experiência de viver ali”, conta.
Essa busca se desenrolou ao longo de diversas viagens, que resultaram em três grandes projetos feitos de maneira sucessiva entre 1992 e 2014. Benditos, desenvolvido ao longo de oito anos, está centrado nas romarias a Juazeiro do Norte e na relação dos romeiros com as imagens da fé na terra de Padre Cícero. Chão de Graciliano, feito ao longo de quatro anos, é um mergulho no universo literário de Graciliano Ramos, nascido em Quebrangulho (AL). E Céu de Luiz, que durou três anos, trata do ambiente criativo que gestou a música de Luiz Gonzaga, conhecido como “rei do baião”, nascido em Exu (PE).
“Mesmo que não tenham sido pensados como trilogia, os três projetos falam do mesmo lugar, do mesmo sertão, das minhas experiências e aprendizados nesse universo, a partir da imagem, da palavra e da música”, indica Santana, cuja fotografia é marcada pela incompletude e cortes secos. Diversos planos coexistem em uma mesma imagem, retrato e paisagem se mesclam, o homem surge em complexa e fragmentária relação com seu meio ambiente.
A relação entre homem e natureza e a busca por uma expressão ao mesmo tempo documental e autoral também está no centro da poética de João Castilho. Um de seus primeiros trabalhos a ganhar repercussão foi Redemunho, narrativa fantástica por um sertão cheio de opostos. As imagens foram captadas na região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e o trabalho é inspirado em Guimarães Rosa.
“Em Redemunho fui atrás de uma realidade gasosa, que se esvai no ar. Fenômenos que não podem ser antecipados ou previstos. São acontecimentos que brotam numa quase total imprevisibilidade. São rápidos e efêmeros e por isso é preciso estar disponível e atento para apreendê-los. Já estavam presentes ali vários elementos que voltariam mais tarde em outros trabalhos, como a presença do animal, a ideia de circularidade, as imagens monocromáticas, a edição em blocos de cor, as relações entre território e magia”, explica Castilho.
A série Zoo, desenvolvida por ele em 2014 com Bolsa ZUM de Fotografia, voltou a abordar a relação entre homem e natureza. Para compor as imagens desse trabalho, Castilho buscou animais silvestres recolhidos em centros de acolhimento e os inseriu em interiores de casas, introduzindo um estranhamento reflexivo.
O corpo e a fotografia
O próprio corpo pode ser tema de exercícios autorais. Essa é a abordagem de Jacqueline Hoofendy, que tem no autorretrato a principal forma de expressão poética própria. Esse caminho foi trilhado a partir de experiências pessoais, que fez com que ela identificasse no autorretrato uma expressão performática, envolvendo vários papéis ao mesmo tempo, como o de fotógrafa, produtora, cenógrafa, diretora de cena e de arte, figurinista e atriz.
“A conexão essencial que me fez eleger o gênero autorretrato como expressão principal é o elo com a dança e o teatro. Há alguns anos, quando precisei refletir sobre meu trabalho, descobri que o fato de ter passado toda a infância e a adolescência me dedicando à formação para o balé e posteriormente à dança contemporânea, com objetivo único de ser coreógrafa, explicou naturalmente a minha opção na fotografia”, explica.
A fotografia do corpo e o corpo da fotografia também emergem na poética de Vilma Slomp, que atua em Curitiba (PR) desde o final da década de 1970, realizando trabalhos comerciais e autorais em paralelo. No final dos anos 1990, diante do surgimento da era digital, Slomp se viu impelida a criar a série À Flor da Pele, de 1999, que explora a dimensão material da fotografia, ao criar objetos e ampliações em formatos inovadores.
Esse processo teve continuidade com a exposição Ilusão, realizada no Museu de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro em 2000, com curadoria de Agnaldo Farias, que reuniu obras questionadoras do estatuto documental da fotografia, objetos e imagens ambíguos, no meio do caminho entre o corpo e a paisagem.
Slomp também tem trabalhos autorais sobre lugares. O centro de Curitiba (PR) foi tema desenvolvido pela fotógrafa ao longo de 33 anos, desde o início de sua carreira, quando morava na região. As imagens em filme P&B acumuladas ao longo dos anos, sempre em passeios realizados nos fins de semana, quando a cidade está mais vazia, foram editadas e reunidas no livro Curitiba Central, lançado em 2013.
A paixão mais recente de Slomp é a Amazônia, tema ao qual pretende se dedicar até o final da vida. Ela editou o vídeo Amazônia: o ser & o estar a partir de fotografias captadas em três longas viagens de barco pela região, realizadas em 2014, 2016 e 2017. No início de 2020, esteve em Roraima para fotografar as populações ribeirinhas do Rio Branco. “ Com mais de 1.100 rios no tapete verde do mapa da Terra, a Amazônia nos torna humildes, demanda várias vidas para conhecer. Vou dar continuidade a esse trabalho até ir embora daqui. A Amazônia é sempre retumbante nas dimensões, clima e natureza, virando ao avesso um artista em busca do conhecimento”, define.
A escolha do equipamento
Junto com o conteúdo, a forma é uma dimensão fundamental para a criação autoral. Em fotografia, o tratamento da forma se dá na escolha do equipamento, do suporte de captura e das técnicas de revelação e edição. “Como a fotografia é uma imagem técnica que combina as características tradicionais dos meios de criação com instrumentos e insumos de produção industrial, a questão do equipamento é de fato fundamental. De nada vale saber qual é a marca do pincel de Picasso, mas no âmbito da fotografia a coisa é diferente, já que cada câmera é dotada de ‘personalidade própria’, de modo que o equipamento usado influencia no resultado final”, observa Pedro Vasquez.
No processo criativo de Tiago Santana, o equipamento não tem um papel de destaque e sempre está subordinado à intencionalidade e à intensidade da abordagem autoral. Nos trabalhos realizados sobre o sertão nordestino, ele sempre utilizou filme P&B mais por uma questão conceitual do que formal. “Até hoje uso filme, sou um homem ainda analógico. Uso a película não por nostalgia ou por achar melhor esteticamente, mas por achar mais adequado ao tempo do sertão, ao tempo desse lugar. Assim como o tempo da imagem latente no filme e o tempo entre o registro e a revelação. Acho que é mais delicado e íntimo com o tempo dessas pessoas que fotografo. Também me interessa muito o negativo, o físico, o objeto negativo”, constata.
A materialidade da fotografia é um aspecto presente nos trabalhos de Vilma Slomp, como apontado anteriormente; João Castilho, por meio do uso de instalações; e de Jacqueline Hoofendy, que lança mão de filtros fabricados artesanalmente para obter texturas e imprecisões inesperadas. A fotografia é, a princípio, uma mídia bidimensional, mas pode e deve ser pensada como objeto e como instalação. Nesse processo, a participação do curador, também ela autoral, pode trazer aportes relevantes.
Aprendizagem e trocas
A fotografia autoral envolve uma aprendizagem ampla, pesquisa constante de referências e de materiais, compartilhamento e troca com outros fotógrafos, com pesquisadores e curadores. Para criar um ambiente propício à produção fotográfica autoral, Eder Chiodetto fundou em 2011 o Ateliê Fotô, que mantém um grupo de estudos permanente.
“Fazemos encontros semanais em que discutimos profundamente as produções dos integrantes, pesquisamos artistas e teóricos com a finalidade de cavar cada vez mais conceitos e referências que podem ajudar cada integrante a avançar em seus projetos. É um processo bem profundo, quase terapêutico, já que a busca de uma verdade interior é fundamental para que cada um mova seus instintos, seus dogmas e suas crenças na direção do gesto criativo”, explica.
Jacqueline Hoofendy também investe na atividade didática e desenvolve cursos a distância há cinco anos, muito tempo antes de a pandemia do novo coronavírus tornar a prática indispensável. “Desenvolvi alguns modelos para os cursos. Uns de caráter imersivo e de longa duração, outros mais curtos e que abordam recortes bem específicos, mas quase todos voltados para o autorretrato e para a autoexpressão. Esses cursos são fundamentados integralmente na minha experiência pessoal, em que me sinto mais autorizada a orientar a construção e o pensamento de cada aluno”, comenta.
Além de fotógrafo, Tiago Santana tem atuado como promotor do trabalho de outros talentos por meio da editora Tempo d’Imagem, fundada em parceria com Celso Oliveira em 1994. Também é diretor artístico do Solar Foto Festival, cuja primeira edição foi realizada em Fortaleza (CE), em 2018.
O fotógrafo cearense conta que sua formação como fotógrafo foi com livros, mas também através dos festivais, mais especificamente com as Semanas Nacionais de Fotografia organizadas pela Funarte nos anos 1980, fundamentais para seu aprendizado e para as conexões entre os fotógrafos no Brasil naquele momento. “Existe uma efervescência do que posso chamar de uma jovem produção da fotografia brasileira. E os espaços dos festivais são fundamentais para a difusão desses autores”, defende Santana.
A descoberta da curadoria
Com mais de uma centena de exposições “curadas” no Brasil e no exterior, Eder Chiodetto confessa que a atividade de curadoria “assassinou” o fotógrafo que nele havia. A descoberta se deu em 2003, em um workshop realizado em Guayaquil, no Equador, ministrado pela fotógrafa Susan Meiselas. Chiodetto começou a dar pitacos sobre edição do trabalho dos participantes e suas intervenções chamaram a atenção da mestra.
“Passado uns dias ela me chamou de lado e disse: ‘O mundo está precisando de mais editores. Você leva jeito. Pense nisso!’. Mas eu gosto de fotografar, repliquei. E ela: ‘Quando você se envolver com algum projeto, vai lá e fotografa, mas não deixe de olhar para os trabalhos dos outros e ajudar na edição. Isso é também um gesto político importante’. E assim foi”, recorda o fotógrafo.
Dentre seus trabalhos autorais em curadoria, Chiodetto destaca a exposição Poder Provisório, realizada no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo em 2014, com obras do acervo da instituição. No ano anterior, ele havia selecionado o trabalho da Mídia Ninja para figurar entre os artistas participantes do programa do Clube de Colecionadores do MAM. A escolha causou um debate acalorado sobre o papel da arte, do museu e das hierarquias que regulam o acesso a ele.
“Percebi que muitas fotografias de caráter documental e jornalístico que o MAM-SP havia acolhido em seu acervo raramente eram expostas, mesmo tratando muitas vezes de temas que os artistas também discutem em suas obras. Então fiz um projeto expográfico bem arrojado misturando fotos documentais e experimentais sem espaço entre elas e todas tematizando questões relativas a poder”, explica.