A natureza geralmente é celebrada pela exuberância de cores, mas nem sempre foi assim. Nos primórdios da fotografia, no início do século 20, os filmes eram em P&B e com eles que se fotografava vida selvagem e paisagens – o exemplo mais conhecido é do mestre americano Ansel Adams (leia mais sobre ele na pág. 22). Hoje, em plena era digital, o P&B surge como uma forma mais artística de registrar a natureza, e dois dos maiores nomes brasileiros na área, Araquém Alcântara e Luciano Candisani, vêm utilizando a monocromia com grande sucesso em trabalhos recentes.
Mais do que fotógrafos de segmento, ambos são documentaristas do meio ambiente, o que inclui registrar pessoas e comunidades, com suas vivências, anseios e comportamentos, além de ecossistemas e vida selvagem. Araquém e Candisani também convertem para P&B paisagens naturais e vida selvagem, mas na maior parte dos projetos em que elegem trabalhar com a monocromia o elemento principal é a figura humana e sua interação com o ambiente natural.
ARAQUÉM ALCÂNTARA – Um fotógrafo do Brasil
Araquém Alcântara começou a fotografar em Santos (SP), sua cidade natal, em 1970, e as primeiras imagens em P&B feitas por ele foram com uma Yashika Electro 35 e um filme Kodak Tri-X Pan quando ainda era estudante de Jornalismo. Tempos depois, já atuando como fotojornalista no jornal Cidade de Santos e a seguir na sucursal santista do Jornal da Tarde, ele fez o primeiro trabalho de peso: uma matéria sobre Cubatão, cidade industrial na baixada santista apontada pela ONU como a mais poluída do mundo no início dos anos 1980. Esse material em P&B acabaria por conduzir Araquém à grande missão de sua vida: a defesa do meio ambiente pela fotografia.
A paisagem contraditória da baixada santista, que reúne poluição industrial e preservação de trechos de Mata Atlântica nativa, levou Araquém a se embrenhar na floresta. Ali ele descobriu a cor, usada em seu trabalho sobre a região da Jureia, que resultou em um movimento contrário à instalação de uma usina nuclear nessa porção sul do litoral paulista, nos anos 1980, na criação da Estação Ecológica de Jureia-Itatins (SP). De lá para cá, numa trajetória rotulada como a de um “fotógrafo de natureza”, foram 53 livros publicados (cinco deles em P&B).
“Estou fechando o circuito e voltando cada vez mais ao P&B. Dos meus livros mais recentes, três deles são em P&B, com curadoria do Eder Chiodetto: Sertão sem Fim, de 2009; Araquém Alcântara: Fotografias, de 2010; e Veredas, de 2014. Não me vejo mais como um fotógrafo de natureza. Eu me considero fotógrafo do Brasil. No início da minha trajetória, entrei em contato com a obra de Ansel Adams e, inspirado nela, me coloquei como missão revelar o meu País, sua grandeza e sua riqueza, o patrimônio geológico e humano, a fauna e a flora. Essa saga é minha missão de vida”, afirma.
Projeto é o começo de tudo
Para Araquém Alcântara, o mais importante é atuar pensando em projetos, sendo que alguns pedem P&B e outros ficam mais bem realizados em cor. Quando o projeto ainda está em fase inicial, é o momento de testar, experimentar, até encontrar o caminho. Por isso, é comum sair a campo com duas câmeras, uma para capturas em cor e outra em P&B. “O fotógrafo deve ter um projeto na cabeça e que seja algo bem delimitado e sintético. Não adianta sair fotografando sem diretriz e também não precisa ter tudo fechado na cabeça, pois a fotografia é um exercício contínuo e sem fim. Você pode mudar de ideia no meio do caminho, mas isso se descobre no próprio percurso, na prática”, ensina.
Ele concebe seus projetos em geral tendo em vista a publicação de um livro e a realização de uma exposição. “O fotógrafo só aparece quando imprime, quando publica as fotos em um livro ou realiza uma exposição”, opina. No percurso que vai da concepção da ideia até a impressão, outros profissionais se juntam ao trabalho; ele destaca a importância de pelo menos três: “Um bom livro precisa de um bom parceiro para fazer o texto e a curadoria, outro para fazer o design e outro que possa acompanhar com você o processo de impressão. Vejo muito livro de fotografia que sai sem esses cuidados básicos”, comenta.
Ao iniciar um projeto, ele vai separando imagens que podem fazer parte do livro e realiza o tratamento inicial no Lightroom. Um dos pontos mais importantes do seu fluxo de trabalho está na eliminação de fotos banais, processo em que 90% do material é descartado antes de passar por tratamento. Dos 10% restantes, muita coisa ainda será deixada de lado no momento de avaliar as imagens no monitor do computador.
Depois de acumulado um bom número de imagens selecionadas e tratadas, ele começa a conversa com o curador – diálogo que pode levar meses. Esse é o momento crucial para definir a narrativa a ser desenvolvida e para que o fotógrafo possa se livrar de imagens às quais tem uma ligação emocional, mas que não dizem muito no contexto geral.
Quando chega o momento de imprimir o livro, o tratamento final fica por conta de um printer profissional. “Quem tem condição financeira deve contar também com um produtor gráfico, a pessoa que conhece em profundidade os recursos das gráficas e sabe como chegar no resultado que você deseja. Sou muito exigente com a impressão dos meus livros e acompanho tudo de perto. Quando é P&B, gosto de um tratamento bem contrastado, mas sem perder detalhes na baixa luz”, observa.
LUCIANO CANDISANI – Um homem do mar
Luciano Candisani se sente em casa quando está no mar. Criado no litoral, hoje vive em Ilhabela(SP), mesmo local onde começou a mergulhar e fazer fotografias subaquáticas aos 14 anos de idade. Ao realizar o curso de Biologia na Universidade de São Paulo (USP), tornou-se mergulhador-fotógrafo do Instituto Oceanográfico e passou a documentar diversas expedições, inclusive à Antártica. Assim, quando recebeu o convite da cineasta Lygia Barbosa para ser personagem em um documentário sobre as haenyeo, grupo de senhoras mergulhadoras da Ilha de Jeju, na Coreia do Sul, ele adorou a ideia.
A proposta era inusitada: o longa–metragem seria o resultado da documentação da relação do fotógrafo com o tema, na busca da realização do trabalho. Candisani optou por fotografar em P&B, da concepção e estudo às imagens finais, pois percebeu que ainda não havia registros que retratassem as mergulhadoras no ambiente subaquático, na árdua tarefa de mergulhar em apneia para a coleta moluscos e algas no fundo do mar. Julgava ainda que estavam no fundo das águas da Ilha de Jeju quase todos os elementos simbólicos imprescindíveis a uma narrativa original. “Queria mostrá-las imersas no ambiente do qual tiram seu sustento, mas sem correr o risco de ter a exuberância multicolorida de algas, corais e peixes disputando atenção com elas. Daí veio a decisão de fazer em P&B”, conta.
O filme Haenyeo, a Força do Mar foi lançado pelo canal NetGeo em março de 2018 (leia mais em Fotografe 258) e, recentemente, em maio de 2019, Luciano Candisani retornou à Ilha de Jeju por mais 15 dias para realizar novas imagens, tendo em vista a exposição Haenyeo, Mulheres do Mar, programada para estrear no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), em 29 de agosto de 2019 – mostra que será acompanhada do lançamento de um livro com o mesmo título pela editora Vento Leste.
Embora o trabalho envolva imagens subaquáticas, a atenção não está no ambiente marinho, mas nos personagens humanos envolvidos na história. Por essa razão, o P&B ficou sob medida, expressando com dramaticidade os desafios físicos enfrentados pelas mergulhadoras, a grande maioria com idade acima dos 50 anos – dada a perda de interesse das novas gerações em aprender uma tarefa tão difícil e extenuante. Esse, aliás, é o primeiro ensaio longo feito completamente em P&B por Candisani.
Muito treino antes
Antes da primeira viagem à Coreia do Sul, no segundo semestre de 2017, o fotógrafo passou um mês realizando testes no litoral da Ilhabela em pleno inverno. Era preciso enfrentar uma série de desafios técnicos relacionados a uma condição inédita para ele: fotografar em P&B mergulhando sem cilindro. “Treinei a um só tempo as técnicas de apneia e de fotografia. Testava diferentes fontes de iluminação e analisava as tonalidades de cinza resultantes. Mais tarde, na Ilha de Jeju, esse tempo gasto em preparação e ajustes se mostrou fundamental”, avalia Candisani.
Se na primeira viagem, feita no verão sul-coreano, a temperatura média do mar estava na casa dos 23 graus, e Candisani usou roupa de mergulho completa de 5 mm de espessura. Na segunda, realizada na primavera de 2019, a temperatura caiu para uma média de 15 graus e ele teve de usar uma roupa semisseca de 7 mm. Ele conta que depois de quatro horas direto no mar, o frio incomodava muito e ficava mais difícil pensar em parâmetros como luz, exposição e composição.
As capturas são feitas em formato RAW, no modo monocromático. Dessa forma, as imagens mantêm as informações de cor, mas são exibidas no monitor da câmera em P&B. “Preciso ver o resultado na hora, pois meu raciocínio de luz e sombras e separação de planos é completamente diferente em P&B”, explica. E, após um dia fotografando, ele confere todo o material com o uso do software Photo Mecanic. “Com ele, vejo tudo em P&B, conforme fotografado. Nesse ambiente faço uma primeira edição, que chamo de edição de campo. Só separo o que é realmente bom”, afirma Candisani.
A edição final é realizada na volta da viagem, via Lightroom, quando é possível abrir as imagens em cor ou em P&B. Candisani sempre opta pelo P&B, evitando ao máximo ver o material colorido. Os ajustes realizados são básicos, já que a finalização fica por conta de outros profissionais – ele costuma trabalhar com Marina Neder e Marcos Ribeiro nessa etapa. No caso do ensaio sobre as haenyeo, quem cuidou da finalização foi Ribeiro.