O estúdio inaugurado em 1984 no número 1.900 na Rua Alvarenga, no bairro do Butantã, quase em frente ao portão principal da Universidade de São Paulo (USP), já é catalogado como um clássico da arquitetura paulistana devido à modernidade do projeto, ainda atual segundo especialistas. Foi transformado em espaço de coworking há menos de um ano, mas logo ficou vazio com a chegada da pandemia. Enquanto reinou como estúdio de sonho para qualquer fotógrafo, a soberana lá dentro estampava seu nome na larga e pesada porta de ferro da entrada: Ella Dürst. Entre tantas mulheres que fizeram história na fotografia brasileira por abrir caminho para outras, ela tem um destaque especial pelo pioneirismo na publicidade, segmento amplamente dominado por “Bolinhas” e no qual pouquíssimas “Luluzinhas” entram para o clube.
Ella Dürst não vê qualquer sentido em separar o trabalho de homens e mulheres na fotografia. Para ela, não existe diferença, algo que aprendeu desde criança, pois teve uma educação avançada para os padrões da época. Nascida em 8 de dezembro de 1951 na cidade de São Paulo, é filha do cineasta, escritor e roteirista Walter George Dürst (1922-1997) e da premiada atriz de teatro, cinema e televisão Bárbara Fazio (1929-2019). Entre suas lembranças de infância estão brincadeiras pelos estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em São Bernardo do Campo (SP), enquanto os pais trabalhavam.
“Meus pais me ensinaram desde cedo a buscar minha independência. Naquela época, diziam que mulher já nascia desgraçada por ser mulher. Então, o jeito era ter uma vida de homem, trabalhar como um homem, o que fiz minha vida toda”, conta. Na busca por uma profissão desde a adolescência, a mãe a incentivou a estudar piano para ser uma concertista. E lá foi Ella Dürst ter aulas com ninguém menos que Magda Tagliaferro (1893-1986), a maior pianista brasileira de todos os tempos, que na época havia aberto uma escola na capital paulista. Mas enquanto dedilhava teclas também se encantava com as fotos das revistas Life da coleção do pai e com os livros de arte que ele acumulava na ampla biblioteca. “Quando eu tinha de 15 para 16 anos, a parede do meu quarto era de capa com fotos de capas de revistas. Também gostava muito de desenhar. Minha ligação com a imagem já existia sem que eu tivesse consciência”, comenta.


Cinema e laboratório
Com pai cineasta-roteirista e mãe atriz, entrar aos 17 anos na Escola de Comunicação de Artes (ECA) da USP para fazer parte da segunda turma do curso de Cinema foi um caminho natural. Mas a tímida e ao mesmo tempo irriquieta Ella Dürst descobriu na faculdade um mundo à parte: o maravilhoso laboratório fotográfico da ECA. A expressão popular “pinto no lixo” é perfeita para definir como ela se sentiu quando descobriu os segredos dos químicos para revelar um filme e a magia de manusear um ampliador. “Meu professor de Fotografia era o Carlos Moreira e os alunos usavam câmera e lentes da Leica. Era tudo de primeiro mundo naquele laboratório. Eu passava o maior tempo que podia por lá e não saía do lado do Carlos para aprender o que fosse possível. Com o tempo, comecei a usar o laboratório para fazer umas ampliações para amigos e ganhar um dinheirinho por fora para comprar minha primeira câmera profissional, uma Leica R de segunda mão”, relata a fotógrafa.
Formada em Cinema aos 20 anos, mas cada vez mais ligada à fotografia, Ella Dürst se dividiu em duas atividades: foi contratada como cinegrafista na TV Cultura, emissora estatal paulista (também foi uma das pioneiras nessa função), e passou a dar aulas de Fotografia na ECA a convite de Carlos Moreira (1936-2020) – tido como um dos grandes fotógrafos brasileiros de cenas de rua. “Todos os cursos da ECA tinham a disciplina de Fotografia e o Carlos não estava dando conta. Ele pediu autorização, me convidou e eu aceitei. Fiquei numa situação meio irregular, pois só tinha graduação. Mas assumi o compromisso de fazer uma pós–graduação para continuar dando aula. Estudei mais dois anos na pós de Semiótica e dei aula lá até 1978. Porém, percebi que não tinha perfil para a vida acadêmica. Não nasci para dar aula”, avalia.
O que ela mais desejava era montar o próprio estúdio, ser profissional de fotografia, e era incentivada pelo pai. “Ele achava lindo ter uma filha fotógrafa”, lembra. A primeira oportunidade surgiu quando ela, ainda cinegrafista da TV Cultura, foi fazer uma matéria no apartamento da consagrada fotógrafa Claudia Andujar sobre abertura de uma exposição no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Feita a matéria, contou para Claudia que também era fotógrafa e foi incentivada a levar suas fotos até o Masp, onde Claudia cuidava da área de fotografia, para que ela avaliasse, pois estava em andamento um projeto para uma exposição com jovens talentos.
“Corri para o laboratório da ECA, caprichei nas cópias e levei para a Claudia ver, morrendo de medo. Era uma série que eu tinha feito com uma amiga minha. Ela adorou. Chamou o Bardi para mostrar e disse que usaria minhas fotos no espaço de entrada da exposição. Foi inacreditável”, recorda. O próprio Pietro Maria Bardi (1900-1999), criador do Masp e então seu diretor, acabou indicando Ella Dürst para um frila de moda para a revista Vogue, no qual ela fotografou vestidos de noiva. “Não tinha a menor ideia de como usar modelos. Convidei umas amigas minhas, bonitas, e fiz o serviço. O Bardi se tornou um querido amigo a partir daí”, diz a fotógrafa, que nessa época, em 1975, montou seu primeiro estúdio, pequeno e com pouco equipamento.




O primeiro sutiã
À procura de trabalho como fotógrafa de estúdio, Ella Dürst encontrou com um colega de faculdade que, por acaso, conhecia a publicitária suíça radicada no Brasil Magy Imoberdorf. Nunca tinha entrado em uma agência, mas separou uma dúzia de fotos e levou para Magy avaliar. A publicitária a incentivou a procurar um diretor de criação, profissional que ela não tinha a menor ideia do que fazia.
Graças às dicas de Magy, Ella Dürst percebeu que havia um mercado de muito potencial a explorar. “Havia um nicho em que os homens tinham mais dificuldades, como de publicidade de lingerie, e ter uma mulher fotografando parecia mais cômodo para as agências e para os clientes. Outra área interessante era a de publicidade com bebês. Fiz muita coisa para a Johnson”, lembra a fotógrafa.
Ela se tornou uma referência tão forte em publicidade de lingerie que na famosa campanha “Meu primeiro sutiã”, de 1987, feita para a Valisère, em que se destaca o premiado comercial de Washington Olivetto “O primeiro sutiã a gente nunca esquece”, a parte fotográfica da campanha foi feita por Ella Dürst. “Além de lingerie, eu fiz muita coisa em publicidade. Teve o Calendário da Cofap, na minha fase de mulher pelada. Fiz campanha de carro para General Motors usando fotos captadas com câmera pinhole. Campanhas ousadas para coleções de joias femininas, coleções de moda e também muito varejo. Havia colegas que torciam o nariz para publicidade de varejo. Eu fazia com prazer”, afirma.
O primeiro trabalho com um diretor de criação foi uma grande lição de como o mundo da fotografia de publicidade funcionava. Para a propaganda de um sabonete, Ella Dürst precisava fotografar um casal tomando banho de chuveiro – o que fez com amigos que namoravam no banheiro de um apartamento de luxo de outro amigo. “Puro improviso! Fechei bem na cena do banho e pronto. Não tinha a menor ideia do que era produção”, confessa. Apresentado o orçamento para Sampaio, o diretor de criação, ele ensinou como a roda girava na publicidade: “Se pagarem o que está pedindo, logo você vai desistir, pois vai ter prejuízo. Pode pedir doze vezes mais, vai por mim”. Naquele momento, Ella Dürst descobriu um mercado em que havia bastante dinheiro, algo que não encontrara nos freelancers que fazia para o caderno “Modo de Vida”, do Jornal da Tarde, então um vespertino inovador do Grupo Estado.


Clube do Bolinha
No mesmo dia em que ela procurou Claudia Andujar no Masp para mostrar suas fotos, outro jovem fotógrafo fazia o mesmo: Marcos Magaldi, então repórter fotográfico do Estadão e da Agência Estado. Ella Dürst o reconheceu, mas Magaldi não se lembrava de que eles se conheciam da infância, e na conversa que veio a seguir pintou um clima e eles começaram a namorar tempos depois. Magaldi a convenceu a mostrar seu material fotográfico para o jornalista Murilo Felisberto, criador do Jornal da Tarde ao lado de Mino Carta e então o editor-chefe do periódico. Estava sendo criado o caderno “Modo de Vida”, visto na época como uma evolução dos clássicos suplementos femininos, e a jovem fotógrafa parecia ter o perfil perfeito para o projeto.
“Murilo foi muito gentil, elogiou minhas fotos, mas foi direto e sincero: ‘Não vou poder contratar você porque a editoria de fotografia do Estadão não contrata mulher nem homem de cabelo comprido. É uma regra aqui. Então você só pode trabalhar como freelancer’. Claro que aceitei, e aprendi muito no período em que fiz o “Modo de Vida”. Emplaquei várias fotos na primeira página do jornal inclusive”, lembra a fotógrafa. Essa entrada no mundo editorial também abriu caminho para que ela fizesse fotos para a Editora Abril, tanto para matérias quanto para publicidade.
Ella Dürst e Marcos Magaldi estão juntos até hoje, embora tenha havido uma separação entre 1982 e 1992. Nunca se casaram oficialmente nem tiveram filhos. Com o tempo, Magaldi também deixou o fotojornalismo e foi para a publicidade. Ele lembra dessa fase “Clube do Bolinha” do Estadão. “Demorou muito para contratarem uma mulher na fotografia do Estadão. Na minha época até teve uma, não lembro o nome, mas durou poucos meses. Acho que só a partir da metade dos anos 1980 que esse conservadorismo machista foi superado”, afirma o fotógrafo.




O espetacular estúdio de Ella Dürst está atualmente alugado. Ela e Magaldi se desfizeram de muitos equipamentos, mas alguns foram para o amplo sobrado da família Dürst, onde Walter e Bárbara viveram e que agora ficou de herança para os filhos – Marcelo, o irmão mais novo de Ella, é diretor de fotografia de cinema. Na sala é possível ver uma robusta girafa de estúdio como peça de decoração. A fotógrafa ainda está na ativa, mas atualmente só faz trabalhos que acha interessante. “A fotografia de publicidade é muito diferente hoje. Houve uma queda progressiva da expectativa de qualidade de trabalho e com isso veio uma baixa de preços em geral”, analisa.
Quando se pesquisa sobre mulheres brasileiras na fotografia de publicidade, a pioneira Dulce Carneiro (1929-2018) é um nome sempre lembrado. Mas em um mercado muito mais profissional, que passou por grandes mudanças quando o digital superou o analógico, nenhuma fotógrafa teve mais determinação, vivência e competência do que Ella Dürst, a “Luluzinha” que criou sua própria porta para entrar no clube.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 290