No mais cotidiano dos atos, podemos destilar as mais belas interpretações. Partindo dessa premissa, descoberta na prática, Afonso Neto sempre arranja um tempo em sua apertada agenda de médico para buscar cenas insólitas em Recife (PE), onde vive.
Uma dessas cenas, registrada na foto “Notas musicais humanas”, está entre as finalistas do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024. Na melhor tradição da fotografia de rua, Afonso Neto logrou compor um enquadramento que faz conversar um músico tocando saxofone no primeiro plano com garotos que saltam de um píer ao fundo, ações que ocorrem de maneira separada e sincrônica, reunidas pelo clique do fotógrafo. A imagem foi registrada com câmera analógica e uma película vencida.
Descubra mais sobre a imagem e seu autor na entrevista abaixo.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Olá, me chamo Afonso, tenho 31 anos e moro atualmente em Recife onde atuo como médico.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Sou um grande entusiasta da fotografia desde a adolescência. Venho de uma família onde tudo sempre foi bastante documentado e armazenado com bastante cuidado.
Fato engraçado e que considero como sendo minha primeira abordagem com a fotografia, foi num passeio da escola ao zoológico de Recife. Sim, aos 5 anos de idade, meus pais me confiaram a câmera, para que eu fizesse o registro da viagem, mesmo na ausência deles. O resultado foi uma quantidade de fotos bastante aleatórias, incluindo a de um presépio, em três ângulos diferentes. Minha mãe indignada me perguntou o motivo de eu não ter fotografado nenhum bicho. Bom, até hoje não sei.
Desde então, sempre gostei de reunir o máximo de informações sobre fotografia. Em 2011, ano em que entrei na faculdade, já morando em Recife, conheci o beco do fotógrafo, que nada mais era que uma rua com prédios comerciais repletos de lojas de fotografias. Ali fui exposto a várias câmeras. E foi também onde adquiri a minha primeira máquina, uma Canon AE1. Após isso, passei a ter contato com diversas outras câmeras.
A fotografia é atualmente um refúgio. Passei a colecionar fotolivros e livros teóricos sobre os mais diversos temas dentro da fotografia. Além disso, adquiri o hábito de sempre andar com uma câmera. Dentro de um cronograma bastante apertado, sempre arranjo um tempo para, religiosamente, fazer alguns registros. Atualmente, priorizo mais o uso de equipamento analógico. Mas o melhor foi entender, bem recentemente, que não preciso ir muito longe para capturar grandes cenas. No mais cotidiano dos atos, podemos destilar as mais belas interpretações. Isso é o que mais me motiva atualmente.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Bom, “Notas musicais humanas” foi uma cena que registrei de forma bastante despretensiosa. Em março deste ano, meus pais tinham vindo me visitar em Recife. Resolvemos passear no centro da cidade. Próximo ao Marco Zero, local bastante visitado por turistas, tem um píer onde sempre é possível encontrar garotos saltando. Uma cena corriqueira, mas que nunca me chamou a atenção para fotografar. Porém, nesse dia, eu percebi que duas cenas comuns estavam se desenvolvendo na minha frente no mesmo plano: Um músico se preparava para tocar seu saxofone, enquanto ao fundo, mais alguns garotos se preparavam para saltar do píer. Bom, nessa hora eu sabia que algo muito bom sairia dali. Eu precisava apenas entender como.
Após um momento de antecipação, fiz com que as cenas se conectassem. De início, minha ideia era fazer uma brincadeira de encaixar os garotos na campânula no instrumento. Foram varias fotos que tirei na minha Nikon F3 que estava carregada com um Kodak Portra 160 vencido. Só após pegar os scans foi que tive outra interpretação da cena. De certa forma passei a sentir uma certa cinestesia ao ver as imagens.
Além do mais, fiquei bastante orgulhoso por ter feito esse registro de forma analógica.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Não exatamente em um projeto. Mas estou me forçando a fotografar mais as cenas mais cotidianas possíveis. Belos registros estão saindo disso.
Estou investindo também em entender mais do processo analógico. Recentemente adquiri um ampliador e estou fazendo alguns experimentos de edição de foto em darkroom (ainda apanhando bastante com as fotos coloridas, mas seguindo em frente).
Pretendo me aprofundar mais nos métodos de fotografia analógica e, quem sabe, daqui a alguns anos, reunir algumas numa publicação em forma de livro.