Em 2024, o Rio Grande do Sul viveu a maior catástrofe climática de sua história. Chuvas torrenciais causaram a inundação severa de diversos municípios. A falta de manutenção do sistema de bombeamento de águas na capital gaúcha, uma legislação ambiental leniente, que permitiu o avanço do desmatamento no bioma dos Pampas, e a permissividade com construções próximas demais de rios e lagos, potencializaram os estragos. As águas só recuaram muitos dias depois, deixando um rastro de destruição e perdas.
Assim que ficou sabendo do ocorrido, o fotojornalista Anselmo Cunha se deslocou com mais dois colegas para o município de Sinimbu, um dos mais atingidos inicialmente. O material produzido naquele dia acabou nas páginas de grandes veículos de imprensa do Brasil e do mundo, por meio da Agence France-Presse (AFP). Nos dias que se seguiram, Anselmo Cunha registrou os desdobramentos da catástrofe para a AFP. Parte desse material está reunido no Ensaio “Praxis climática”, um dos finalistas do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024.
Para Anselmo Cunha, a câmera é uma espécie de chave que permite ao artista acessar experiências que vão além do cotidiano. Confira um perfil do fotógrafo na entrevista a seguir.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Estou com 33 anos, 11 deles dedicados ao fotojornalismo. Vivo na cidade onde nasci e pela qual tenho muito carinho: Porto Alegre. Trabalho como fotógrafo freelancer atuando em diversas áreas onde minha linguagem documental é bem-vinda, tanto na produção de retratos, cobertura de eventos culturais, sociais e corporativos, como no fotojornalismo para veículos nacionais e internacionais.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Faço parte de uma geração de fotojornalistas que surgiu junto com as manifestações que tomaram o país em 2013. Foi a partir das chamadas Jornadas de Junho que comecei a entender o poder da fotografia como forma de narrativa sobre eventos históricos. Percebi o quanto ideias podem ser reforçadas ou diminuídas a partir da propagação de imagens e desde então fui me interessando cada vez mais por essa fantástica possibilidade de produção de significados que é a fotografia.
Hoje a fotografia é muito mais que uma profissão. Além dos trabalhos remunerados, busco sempre contar histórias que sem essa ferramenta provavelmente não fariam parte da minha realidade. A câmera é uma espécie de chave que permite ao artista acessar experiências que vão além do cotidiano. Ao trabalhar em um jornal diário, por exemplo, cobri no mesmo dia o lançamento da candidatura ao governo do Estado de um partido conservador e, após o expediente, registrei os treinos do mais antigo time de futebol LGBT do RS para um projeto pessoal.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Em maio deste ano o Estado do Rio Grande do Sul foi atingido pela maior tragédia ambiental de sua história. Centenas de cidades ficaram submersas com as enchentes que se formaram após chuvas torrenciais que sobrecarregaram as capacidades de rios, lagoas e riachos. Foi uma situação terrível para todos os gaúchos e me senti no dever de registrar tudo que vivemos aqui, não só por ser jornalista, mas principalmente por ser daqui, por estar compartilhando desta angústia com meus amigos de familiares.
No dia primeiro de maio, dois colegas e eu embarcamos em um carro decididos a fotografar a situação do município de Sinimbu, um dos primeiros gravemente atingido pelas águas e onde era possível minimamente dimensionar os estragos, pois o nível do Rio Pardo havia baixado rapidamente. Carlos Macedo, Renan Mattos e eu embarcamos neste desafio sem termos conseguido fechar parceria com nenhum jornal ou agência. No caminho, arriscado e recheado de bloqueios que mudavam a todo tempo, íamos tentando contato com diversos veículos de comunicação na tentativa de propagar o material que viríamos a produzir. Não houve uma resposta positiva sequer.
Contra todas as probabilidades, conseguimos chegar ao município. A situação era terrível. Havia móveis, eletrodomésticos, produtos de mercado e até mesmo veículos arrastados por toda a cidade. A primeira imagem que vimos ao chegar, foi de dois caixões sobrepostos, um adulto e outro infantil. Fiz o registro, mas optei por não verificar se haviam corpos dentro. Ao descer do carro, nos organizamos para usar o carro como ponto de reencontro e cada um saiu para um a pé para um lado da cidade a fim de fazer seus próprios registros.
Em poucas horas todos concordamos que era hora de retornar. Não havia sinal de internet ou sequer água e luz na região. Era grande a chance de o rio voltar a subir e ficarmos trancados na cidade devastada. Mesmo com poucos registros devido ao tempo reduzido, voltamos e corremos para tentar um novo contato com os editores. Ao final do dia, nossas fotos haviam sido adquiridas pelos jornais Zero Hora, Folha de S. Paulo e as minhas pela Agence France-Presse, através dos quais foram divulgadas no mundo todo. Então segui essa parceria com a agência e passei o mês registrando a mais dramática das histórias que já cobri, sempre com o objetivo de lutar para que não se esqueça e nunca mais aconteça.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Com a baixa nos níveis das águas e a retomada das atividades, optei por voltar às histórias do cotidiano. Atualmente produzo um ensaio sobre o bairro onde nasci, na periferia de Porto Alegre e sua relação com os demais espaços da Capital, e outro sobre a produção audiovisual da região, uma das mais promissoras do país. Para o futuro, pretendo me engajar cada vez mais na produção do fotojornalismo freelancer, vivendo e contando as histórias da minha região e nas demais do país.