O processo criativo em fotografia vai muito além da escolha do equipamento e da temática, podendo envolver até mesmo a concepção de um alter ego. Foi assim com Beto Pêgo, fotógrafo carioca de 44 anos que criou em 2015 a personagem Betina Polaroid, fotógrafa drag queen cuja produção está centrada no retrato e no autorretrato, usando a estética das câmeras instantâneas com filmes em papel.
Pêgo decidiu encarnar a personagem depois de redescobrir a arte drag em 2014, quando o reality show americano RuPaul’s Drag Race se popularizou e começou a atrair os holofotes do mainstream. Naquela mesma época, passou a frequentar festas promovidas pelo coletivo Drag-se, no Rio, encontrando um ambiente propício para desenvolver um projeto pessoal, pois permitia assumir sua homossexualidade sem qualquer tipo de repressão.
Mesmo depois de 20 anos vivendo abertamente sua sexualidade, Pêgo diz que negava sua identificação com tudo que era associado ao feminino, forjando um padrão minimamente aceitável de masculinidade – até por defesa contra a homofobia. “Assim fui me mantendo protegido na minha bolha de privilégios sociais. Mas fotografar a cena queer como alguém que vem de fora era muito conflitante. Sabia que aquele era meu lugar e que aquela era minha gente. Estava apontando a lente para meu desejo. Permanecer como mero voyeur, protegido pela câmera, jamais daria conta. Eu precisava sair do armário de novo”, explica Pêgo.
Contando sempre com o apoio e a participação do marido, Pêgo aprendeu maquiagem seguindo tutoriais em redes sociais. Levou algum tempo para ter coragem de sair de casa “montada” e lançar-se em sua nova forma física e artística. “Beto era meu disfarce. Betina, a super-heroína que se escondia atrás da câmera. Como Peter Parker, o fotógrafo que esconde os poderes de Homem Aranha, eu escondia… Sarah Jessica Parker”, brinca.
Estética Polaroid
A primeira ideia de nome foi Betina Photoshop. Mas, no processo de concepção da personagem, Pêgo saiu em busca de materiais fotográficos que poderiam usar na produção do figurino e ganhou de presente da fotógrafa Ana Limp uma Polaroid 600, edição limitada, feita em parceira com a Mattel, fabricante da Barbie. “A câmera rosa com estampa de flores era a alegoria perfeita para o resgate da criança viada interior, quando a espontaneidade ainda não tinha sido represada pela reprovação social”, conta.
A Polaroid representou também a reconciliação de Pêgo com a fotografia voltada à experimentação artística, experiência vivida pela primeira vez em 1995, quando ainda cursava graduação em Publicidade e Propaganda e fez um curso na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio. “Quando nasceu a Betina, a Polaroid não produzia mais, mas uma empresa alemã, Impossible Project, fabricava filmes compatíveis. Consegui algumas caixas com a ajuda de amigos que vivem em Berlim”, lembra. Pêgo logo descobriu que seria inviável fotografar apenas com a Polaroid porque o custo era muito alto: 20 euros cada filme. “Imagina cobrir um evento com um equipamento que não oferece quase nenhum controle de exposição, tem um flash pífio e filmes com uma química imprevisível, gastando mais de cem reais a cada oito cliques? Seria loucura e minha falência”, comenta.
Mas Betina usa e abusa da estética Polaroid, mesmo quando fotografa usando uma Canon EOS 5D. Ao tratar as imagens com uso de filtros e molduras em aplicativos, cria Polaroids “virtuais”. Também usa câmeras e filmes do sistema Fujifilm Instax e um equipamento da já extinta Impossible Project chamado Impossible Lab, câmera que “analogiza” imagens digitais ao fotografar a tela de dispositivos móveis com filme Polaroid. “Com ele otimizo o aproveitamento dedicando os filmes às fotos favoritas, previamente selecionadas. Ainda assim há uma perda, porque é um equipamento difícil de dominar e a química ainda é muito instável nos novos filmes Polaroid originais que retornaram ao mercado. Evito o desperdício, uso as fotos descartadas como matéria-prima na confecção de figurinos”, esclarece.
Fotomontações
Betina cria “fotomontações” a partir de diversas imagens, explorando a estética da Polaroid e também a linha do tempo do Instagram, que possibilita gerar mosaicos compostos por várias imagens. O nome é uma analogia com a “montação” drag, expressão usada para o ato de se vestir e se maquiar. As fotos feitas com filme Polaroid permitem fazer transparências, remover a imagem da moldura e até transplantar a emulsão química para outras superfícies. Além disso, Betina costuma agregar glitter, pedrarias, plumas, tintas e outros elementos usados pelas drags em sua “montação”.
Beto Pêgo fotografa, trata e refotografa o tempo todo, o que se tornou um aspecto intrínseco do seu trabalho. São imagens híbridas que transitam entre o digital e o analógico, assim como uma drag transita entre gêneros. A ideia é fazer o espectador se perguntar se é Polaroid que foi digitalizada, foto digital editada para parecer Polaroid ou se foi refotografada com filme. “Faço uma analogia com a dúvida das pessoas que se deparam com Pabllo Vittar, por exemplo, e perguntam se é ‘o’ Pabllo ou ‘a’ Pabllo. Pabllo, como artista drag, é um corpo provocador que borra as definições de gênero, gera confusão e curiosidade, trazendo à tona questões sobre sexualidades, expressões e identidades de gênero”, compara.
Ao produzir como Betina, Pêgo se inspira em fotógrafos que se tornaram ícones da arte queer, desde Andy Warhol e Robert Mapplethorpe (que também se autorretrataram maquiados e montados e utilizaram Polaroid) até o casal Pierre e Gilles, que abusa da estética do universo drag e também cria molduras decoradas para suas imagens.
Além dos autorretratos, Betina Polaroid fotografa outras drags. No início, fazia a cobertura fotográfica das festas do coletivo Drag-se. Com o tempo, reduziu um pouco o ritmo do trabalho documental em eventos e aproveitou o canal criado pelo Drag-se no YouTube para fazer seu próprio programa, o Drag Photo Studio, onde conversava com artistas drags sobre suas referências e produzia um ensaio inspirado nos temas trazidos. Depois veio o projeto Hall of Fame para o concurso drag da festa Queens, em que as vencedoras ganham uma sessão de fotos.
Betina também mantém uma produção espontânea, que nasce das relações afetivas criadas com outras drags. “No estúdio eu procuro que a minha iluminação corresponda com o trabalho de luz e sombra da maquiagem, que na drag tem a função de esconder algumas feições e dar a ilusão de outro rosto. A luz errada pode não só revelar os truques, como destruir completamente o efeito criado. Evito luzes duras, a não ser em makes artísticas, em que a textura é um elemento a ser destacado. Priorizo a luz suave dos softboxes para evitar linhas de expressão e imperfeições da pele geralmente indesejadas. Uso muitos filtros e luzes coloridas também, escolhendo entre cores frias ou quentes para provocar sensações ou criar uma ambientação”, explica.