Andar pelas ruas à caça de imagens, primeiro inspirado no francês Henri Cartier-Bresson e depois confiante no próprio olhar, foi o que fez Carlos Moreira ao longo de seis décadas. Paulistano, explorou o centro da cidade de São Paulo como poucos. Mas também buscou seus flagrantes de rua em cidades próximas, como Santos e Guarujá, no litoral paulista, e em várias outras por onde viajou.
Já convalescendo de uma doença, o fotógrafo ganhou uma grande exposição retrospectiva em 2019, no Centro Cultural Porto Seguro, na região central da capital paulista. Foi seu último grande momento: no dia 11 de junho de 2020, ele encerrou a luta pela vida aos 84 anos. Deixou um grande acervo, que está sendo organizado por Regina Martins, ex-aluna que virou sócia em um estúdio funcionava como escola de fotografia.
Trata-se de um conjunto de cerca de 80 mil negativos P&B e 150 mil negativos em cor, além de arquivos em CDs, DVDs e HDs externos com pelo menos o dobro de imagens – a maior parte, inédita. Regina espera confiar a guarda, preservação, reprodução e difusão desse material a alguma instituição – já recebeu algumas propostas, que estão em fase de estudos.
Além da obra extensa e variada, balanceada entre o P&B e a cor, Moreira teve destaque também por sua atividade como professor, colaborando de maneira decisiva para a formação de muitos fotógrafos, entre eles a celebrada Ella Dürst. Por dois períodos, de 1971 a 1974 e de 1979 a 1990, ele ministrou na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) o curso Básico de Fotografia, frequentado por alunos das graduações em Artes Plásticas, Biblioteconomia, Cinema, Jornalismo, Música, Publicidade e Propaganda, Rádio e Televisão e Teatro.
Novo ângulo
Nascido em 1936, Moreira formou-se em Economia em 1964, mas não seguiu carreira na área – a fotografia, praticada desde os 13 anos de idade, acabou prevalecendo. Como membro do Foto Cine Clube Bandeirante a partir de 1966, formou ali com outros jovens fotógrafos o grupo Novo Ângulo: a inspiração vinha da obra do mestre Cartier-Bresson, e seus integrantes defendiam um estreito contato com a vida das ruas. O grupo não assinava individualmente as imagens, uma ação ousada para a época e embrião do que seriam os coletivos dos anos 2000.
De meados da década de 1960 até 1977, quando lançou seu primeiro livro, Carlos Moreira fotografou de maneira quase obsessiva o centro de São Paulo, retornando diversas vezes aos mesmos lugares, como a Praça Ramos de Azevedo, o Largo do Paissandu e o Viaduto do Chá. Ao longo desse período, usou exclusivamente películas P&B, reveladas e ampliadas por ele mesmo.
Regina Martins conta que nessa fase ele teve como forte referência a obra bressoniana, em que a figura humana é vista com ternura e como elemento da imagem. O estilo de Cartier-Bresson ainda influenciou na escolha do equipamento e na eleição da rua como local de trabalho, além da busca pelo rigor da composição, pelo equilíbrio das formas e pelo momento decisivo. “A mesma referência ele tinha no laboratório: a escolha dos reveladores e a qualidade das ampliações, obtendo ao mesmo tempo nitidez e suavidade no resultado final das cópias, um equilíbrio perfeito entre preto, branco e toda a gama de tons de cinza”, analisa Regina Martins, que teve aulas com ele na ECA-USP e depois se tornou parceira no estúdio M2 Compound.
Hora de mudar
Contraponto e ao mesmo tempo complemento às imagens de São Paulo podem ser vistos nas fotos que ele captou em cidades do litoral paulista na mesma época, sobretudo Santos e Guarujá. Nelas, os espaços são mais amplos graças à presença constante da praia e da natureza. Se o cenário muda, o olhar, a sensibilidade, a sensualidade e a delicadeza na forma de inserir a figura humana em sua interação com a paisagem urbana permanecem como uma marca – a produção desse período deu origem ao livro Carlos A. Moreira – Fotografias, de 1977, publicação emblemática pela qualidade de impressão.
Contudo, a foto de um homem lendo um jornal no Viaduto do Chá, capturada em 1976, acabou marcando uma mudança na abordagem do fotógrafo. Na abertura de sua exposição retrospectiva de 2019, ele afirmou: “Quando olhei para a foto, naquele momento entendi que o mundo que fotografava até então estava em decadência, que algo havia se quebrado. A pureza da abordagem de Cartier-Bresson, que tinha me inspirado até então, precisava de novos elementos. Era preciso mudar”.
A guinada para a cor
A mudança se consolidou a partir de 1989: por causa de uma alergia desenvolvida aos químicos de laboratório P&B, Carlos Moreira passou a fotografar usando negativos coloridos, que mandava revelar em minilabs. “Ele tinha um olhar precioso para cor. Algumas vezes, em um estudo de linguagem, imprimia em P&B as imagens feitas em cor; a beleza e a força da imagem permaneciam”, comenta Regina Martins.
Com a chegada da era digital a partir dos anos 2000, Moreira passou a usar o novo suporte, mas as mudanças de abordagem na fotografia de cenas de rua que ocorreram foram por razões internas dele, e não condicionadas à novidade do equipamento – Regina informa que grande parte dessa produção mais recente permanece inédita e inexplorada; apenas uma fração do material veio a público com a exposição de 2019.
Foi no laboratório fotográfico da ECA, centro de encontros e conversas sobre fotografia, que Regina conheceu Carlos Moreira em em 1981, quando ela cursava Cinema. Depois de formada, ela atuou como monitora e como técnica de fotografia no laboratório até o início dos anos 1990, quando ambos saíram da USP para criar o estúdio M2 Compound, parceria que se estendeu por 30 anos. “Começamos a dar aulas em casa, para grupos de quatro alunos. O laboratório era no quarto dos fundos, com aulas práticas de revelação e ampliação e uma parte teórica. Além da técnica, ensinávamos também linguagem fotográfica”, lembra
Essa fase de aulas em casa durou dez anos e foi interrompida temporariamente em 1994, quando Moreira ganhou uma bolsa da Fundação Vitae de Artes para fotografar na rua todos os dias durante um ano. A partir de 1995, ele também deu aulas na Universidade Mackenzie e no Senac-SP. Em 2000, a dupla criou um espaço próprio e passou a oferecer dois cursos separados, formato que perdurou até 2019, quando Moreira ficou doente e teve que parar de dar aulas para cuidar da saúde.
Matéria publicada originalmente em Fotografe Melhor 292