Todos os anos, milhares de mulheres morrem ao redor do mundo pelas mãos de seus próprios companheiros, vítimas de feminicídio. Visando chamar a atenção para essa lamentável estatística, a fotógrafa italiana Cristina Cenciarelli desenvolveu o projeto “Remember me”, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024 na categoria Portfólio.
O trabalho foi iniciado em 2021, ano em que mais de uma centena de mulheres foram vítimas de feminicídio na Itália. Residindo na ilha de Boipeba (BA) desde 2003, Cristina Cenciarelli fotografou colegas fotógrafas brasileiras em Salvador e Lisboa para o projeto, fazendo-as posar em cenas por ela dirigidas. Sobre os retratos, ela acrescentou o nome de uma mulher morta vítima de feminicídio na Itália, o local onde o crime ocorreu e a idade. Também realizou intervenções usando batons, esmaltes, lápis de maquiagem e tinta.
“Remember me” é um poderoso manifesto, um grito silencioso para chamar a atenção às vítimas silenciadas. Cristina Cenciarelli vem se dedicando recentemente a projetos, exposições, workshops entre Brasil e Itália. Descubra mais sobre ela na entrevista abaixo.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha?
Wow! Começa com uma pergunta complicada… tenho 70 anos, mas vivo e trabalho como uma mulher sem idade.
Sou de Roma, Itália, mas em 2003 me mudei para a ilha de Boipeba, na Bahia.
Um dos aspectos maravilhosos da fotografia é que se pode “trabalhar” em qualquer lugar. Na ilha retrato delicadamente o cotidiano dos nativos, onde a natureza se mistura à espiritualidade, a pesca se torna uma atividade poética, pequenos gestos se transformam em profunda sabedoria, assim Boipeba me deu uma nova forma de viver e de olhar. Em Roma trabalhava com publicidade, teatro e na ilha, de fotógrafa de atores e modelos, virei retratistas de pessoas que nem tinham um retrato ou um espelho.
Entendi que podia usar minha profissão para recriar as histórias desse povo, até então apenas “memórias orais”, fotografando a poesia do seu cotidiano. Todo esse trabalho de anos virou o livro e a exposição “Boipeba lugar sem tempo”.
Nunca esqueço as minhas raízes italianas, são demasiado importantes, mas ao mesmo tempo criei raízes completamente novas, num novo lugar de pertencimento. Por isso, as imagens dos corpos dos pescadores às vezes parecem um filme neorrealista, o vestido de uma Mãe de Santo é uma pintura renascentista.
Foi um destino também o encontro com o candomblé. Confirmada filha de Santo de Oxum e Oxalá, Orixás doces e determinados, tenho o privilégio de poder fotografar as cerimônias e mostrar a beleza, a intimidade, o poder dessa memória viva, dessa espiritualidade profunda, apaixonante e inexplicável.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Recebi de presente minha primeira câmera analógica usada aos 20 anos. Desde o início senti imediatamente que era uma forma nova, muito pessoal e incomum de “escrever com a luz” a minha vida. Mais: uma forma de me entender, uma sutil mas profunda terapia para me reconhecer.
A fotografia ensina-me a ter um ritmo diferente, a sentir a passagem do tempo à minha maneira e não num sistema “cronológico”. Henri Cartier-Bresson falou do “momento decisivo”, mas meu pai, músico, me falava da “pausa na música” e aquele momento misterioso ficou dentro de mim, quando nada parece acontecer, um tempo suspenso, vazio de tudo, quando você pode respirar e a mente está focada em nada, assim como o corpo: este é o momento em que as emoções aparecem.
Minha paixão pela publicidade me impulsionou a trabalhar com fotografia comercial: criei a oportunidade de trabalhar quase um ano em Nova York (1984-85) como assistente em um estúdio de fotografia comercial, e desenvolvendo o projeto “Neon City”, uma visão abstrata das luzes neon noturnas em N.Y.
Nesse período, fui convidada no Brasil para filmar um documentário sobre trabalhadores em grandes fazendas de cana-de-açúcar: foi uma experiência diferente que tocou meu coração e me deu uma nova visão da fotografia, uma revelação humana muito profunda.
Eram os anos 80, os anos dourados da publicidade, mas também uma época muito difícil para uma “mulher fotógrafa”: “Quem é ela?” foi a frase que mais ouvi dos “meus” clientes.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
“Remember me” é um projeto contra o feminicídio, para lembrar as mulheres assassinadas não apenas como pontos num mapa do terror, mas suas histórias, seus rostos. São vozes quebradas, silenciadas, desconstruídas, incapazes de imaginar que o amor pode ser violento.
Pedi às minhas colegas fotógrafas brasileiras que posassem para “gravar” em seus corpos os nomes das mulheres mortas na Itália: fotos de grão grosso, como fotos de jornais antigos. Os retratos são ficção, mas a história que lhes dá substância é tragicamente real.
E durante o período das fotos (quase dois anos), recebi relatos de algumas dessas fotógrafas e de outras mulheres que vivenciaram violência: assim, o projeto foi aos poucos se transformando em uma responsabilidade profunda, comovente, dedicada àquelas que não conseguiram falar.
“Remember me” é a ária da ópera “Dido e Enéias” (Henry Purcell, 1689) que Dido canta quando, por amor, se deixa morrer.
Comecei o trabalho em 2021, quando foi possível se encontrar depois da pandemia, e foi realizado em Salvador e Lisboa: naquele ano, as mulheres italianas assassinadas foram mais de 100 e parecia que as fotos nunca eram suficientes.
Meu trabalho é uma voz visual, um manifesto da tensão real da minha revolta contra a violência, uma tatuagem em nossa pele como mulheres, para não esquecer.
As intervenções artísticas em vermelho são criadas por mim diretamente nas fotos impressas com batons, esmaltes, lápis de maquiagem e tinta. Foi um novo teste doloroso intervir diretamente nas fotos. Desenhar a maquiagem nos rostos, assim como os vestígios de sangue nos corpos, me machucam e criam a consciência de não ter que forçar muito com essas intervenções, para não distrair do fator principal: lembrar os nomes das mulheres. Minha intenção não é apenas um sinal de drama, mas quero dar voz: é um grito silencioso, uma boca em chamas, chamando a atenção para que mais nenhuma vida seja perdida.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Nos últimos 4 anos estou me dedicando a projetos, exposições, workshops entre Brasil e Itália.
Como cofundadora do coletivo artístico “Fotoclube de Mulheres“ estou atuando como tutora e curadora de projetos femininos.
Vou fazer parte do “Panorama da Fotografia da Bahia”, com a exposição ~Ecologia de Sentidos~, que será itinerante em Olinda, Fortaleza, São Luiz e Salvador, entre 2024 e 2025.
Estou trabalhando para apresentar na Itália “Remember me” e o projeto fotográfico “Boxe”.
Tenho dois novos projetos que estou desenvolvendo: o primeiro sobre a roça de Valença, na Bahia, o segundo sobre a ’suspensão do tempo’ em lugares muito frequentados.