Documentar o real para ajudar a compreendê-lo e transformá-lo. Essa foi a grande marca da obra da fotógrafa Dorothea Lange (1885-1965), americana nascida em New Jersey em uma família de origem alemã. Ela é a protagonista de uma exposição retrospectiva intitulada “Dorothea Lange: words and pictures”, prevista para o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, de 9 de fevereiro a 2 de maio de 2020.
Lange deu os primeiros passos na fotografia em um estúdio que atendia às classes mais abastadas de São Francisco, Califórnia, costa oeste do país. Sua abordagem mudou radicalmente no início da década de 1930, quando passou a se interessar pelo registro das ruas e se deparou com as consequências devastadoras da Grande Depressão, período que se seguiu ao crash da bolsa de Nova York, ocorrido em 24 de outubro de 1929.
Uma das imagens mais marcantes desse período, realizada em 1932, mostra a fila do pão em White Angel, São Francisco. Tomada de um ângulo ligeiramente elevado, sintetiza sua força em um homem no primeiro plano, que olha desolado para algum lugar perdido. Sem retirar a dignidade do personagem, Lange conseguiu expressar a aspereza de suas condições: a fome e o desemprego.
Em 1935, Lange se separou do primeiro marido, o pintor Maynard Dixon, com quem teve dois filhos, e casou com o economista Paul Schuster Taylor. Essa mudança na vida privada também se refletiu na transição da fotografia de estúdio para a fotografia documental e teve desdobramentos em sua obra.
A lendária FSA
A partir de 1935, Dorothea Lange passou a trabalhar para a Resettlement Administration, agência criada pelo presidente Franklyn Delano Roosevelt para ajudar a reverter os efeitos da Grande Depressão na zona rural, apoiando pequenos proprietários de terra a retomar suas atividades. Em 1937, a agência mudou seu nome para Farm Security Administration (FSA), e passaria para a história como um dos maiores fomentadores da fotografia documental.
A fotografia foi amplamente utilizada pela FSA para registrar a realidade, criar diagnósticos e orientar ações. Roy Stryker (1893-1975) dirigiu a seção de fotografia da FSA de 1935 a 1942 e orientou o trabalho de documentação realizado por fotógrafos como Dorothea Lange, Walker Evans, Russell Lee, Jack Delano e Gordon Parks. A agência acumulou um acervo de cerca de 270 mil imagens, algumas delas se tornaram icônicas.
A mais famosa e reproduzida dentre elas é a que ficou conhecida como Mãe Migrante, realizada por Lange em 1936. A fotógrafa conta que a cena de uma mulher faminta com seus dois filhos pequenos atraiu seu olhar imediatamente. No movimento de aproximação, fez cinco fotogramas, conseguindo o enquadramento ideal no último clique. Florence Owens Thompson, de 32 anos, traz no rosto as marcas da miséria, e seus dois filhos se escondem envergonhados nos ombros dela.
A força desse retrato fez com que a imagem corresse o mundo, tornando-se em uma das fotografias mais reproduzidas da história. O MoMA incluiu a imagem na primeira exposição realizada pelo Departamento de Fotografia do museu, realizada no ano de sua criação, em 1940.
Na maior parte das saídas a campo, Lange ia acompanhada de seu marido, Paul Taylor, também contratado pela FSA. Da colaboração entre os dois nasceu o livro An American Exodus: a record of human erosion, publicado em 1939, um marco na fotografia documental. “O livro representa o coração desse projeto desenvolvido em conjunto: uma combinação deliberada e persuasiva de palavras e imagens que sugere formas para que os dois elementos possam se amplificar mutuamente”, avalia Sarah Meister, curadora de fotografia do MoMA.
Direitos humanos
Após sua atuação na FSA, Dorothea Lange seguiu documentando temas sensíveis relacionados aos direitos humanos nos Estados Unidos. Em 1942, ela registrou campos de internação compulsória de famílias de origem japonesa na costa oeste dos EUA. Tais campos foram criados depois do ataque japonês a Pearl Harbor, que marcou a entrada do país na Segunda Guerra Mundial. Todas as famílias foram indiscriminadamente declaradas suspeitas de colaboração com o Japão e internadas, sem que houvesse qualquer tipo de julgamento. As fotos de Lange expressam essa condição.
De 1955 a 1957, Lange trabalhou em um ensaio fotográfico para a revista Life sobre a vida de um defensor público na busca de obter justiça para pessoas carentes, a maioria delas negras. O ensaio não chegou a ser publicado, mas as imagens foram utilizadas para ilustrar o livro Minimizing Racism in Jury Trials, publicado em 1969 com o intuito de mitigar o racismo no sistema judiciário americano.
Além de veicular suas imagens em jornais e revistas, Lange teve ligações muito próximas ao Departamento de Fotografia do MoMA desde sua criação. Ela trabalhou intensamente em conjunto com o chefe do departamento, John Szarkowski, ao longo do ano 1965, para preparar a primeira grande exposição retrospectiva no museu de Nova York. Infelizmente, ela morreu em outubro de 1965, antes de ver a exposição, que seria aberta em janeiro de 1966.
A nova retrospectiva de Lange no MoMA está centrada na relação entre fotografia e palavra ao longo da carreira da fotógrafa. A curadora Sarah Meister conta que se surpreendeu com a grande quantidade de escritos deixados por Lange enquanto fazia sua pesquisa para conceber a exposição. Uma passagem anotada no diário da fotógrafa diz que todas as fotografias são documentais, mesmo as feitas sem esse intuito, e podem ser fortalecidas quando combinadas às palavras. Essa passagem chamou a atenção da curadora Sarah Meister e acabou virando o mote da exposição.