Conta a história oficial que os povos originários do Brasil foram dizimados com a chegada dos colonizadores europeus. Essa é uma meia verdade. Embora tenham sofrido de fato um genocídio, os indígenas resistiram e ainda resistem até hoje. Suas tradições estão vivas e profundamente entranhadas na cultura popular brasileira.
Vivendo em Parnaíba, no litoral do Piauí, Gelson Catatau se dedica a resgatar parte dessa história abafada. No Portfólio “Peixes Racionais”, um dos finalistas do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024, ele registra em profundidade aspectos da cultura local, das populações ribeirinhas do Delta da Parnaíba, que vivem da pesca artesanal. Eles são, em grande medida, descendentes dos povos indígenas Tremembé, que habitam a região há séculos e são conhecidos como “peixes racionais”, por serem hábeis nadadores e destros na pesca. O trabalho de Gelson Catatau, que tem formação em Engenharia da Pesca, chama a atenção pela qualidade no tratamento das cores e pela intimidade com seus retratados e sua atividade.
Na entrevista a seguir ele conta os detalhes de seu projeto e os planos para o futuro. Conheça.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Tenho 38 anos. Moro e trabalho em Parnaíba, litoral do Piaui. Divido a vida com minha companheira de vida e trabalho Ster e temos um filho de 1 ano que se chama Devir. Esse pequeno litoral do Brasil é um lugar único no mundo porque temos um Delta, o único das Américas que deságua em mar aberto e o terceiro maior do mundo, uma região de paisagens incríveis e de grande biodiversidade.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Comecei a me interessar pela fotografia no final do meu curso de graduação em Engenharia de Pesca na Universidade Federal Delta do Parnaíba, em 2015, já imerso nas comunidades ribeirinhas do Delta. Após uma temporada em Portugal, ainda em 2015, comprei minha primeira câmera fotográfica e estudei fotografia na Escola Mil Cores em Lisboa.
Em 2016, ao retornar, conectei-me com fotógrafos piauienses e consegui uma oportunidade de trabalhar com fotojornalismo em Teresina. Essa fase foi um grande aprendizado, pois aprendi a viver de fotografia e conheci vários lugares do meu estado, do Sertão ao Mar.
Em 2017, voltei para Parnaíba, minha cidade natal, com a vontade de rever a minha região através das lentes da minha câmera. Fotografei muita rua e cotidiano, sentindo-me conectado ao Zen no ato de fotografar. Nesse ano, encontrei minha companheira de vida e projetos, Ster, que atua como curadora e ajuda a dar narrativa e profundidade aos meus trabalhos. Juntos, nos dedicamos a projetos pela conservação e valorização da cultura natural e humana do Delta do Parnaíba.
Em 2018, tive a oportunidade de fazer minhas primeiras exposições, uma coletiva e uma individual, que refletiam meu momento de conexão com o presente através da fotografia. Minha fotografia evoluiu de um estilo espontâneo para algo mais pensado e retratado, à medida que comecei a refletir mais sobre a região onde vivo.
Em 2020, durante um breve retorno das atividades em meio à pandemia, viajei pelo Delta do Parnaíba para fotografar para o Museu do Mar do Delta do Parnaíba. Nesse projeto, percebi a ameaça às tradições e ao modo de vida das comunidades ribeirinhas devido à especulação imobiliária e ao avanço das usinas eólicas.
Em 2021, em parceria com o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), realizei o documentário “Ventos do Delta”, alertando sobre os impactos das usinas eólicas na Ilha Grande, onde fica a Praia Pedra do Sal. Em 2023, fui convidado a fotografar para o Museu dos Povos Indígenas do Piauí, investigando a cultura indígena do estado e entendendo meu papel como herdeiro dessas tradições. Este trabalho, além de documentar, é uma forma de preservar a ancestralidade dos povos originários do Piauí.
Toda essa trajetória está resumida no portfólio “Peixes Racionais”, que fala sobre a visão de que os povos do Delta do Parnaíba precisam ser estudados e percebidos como tal. Como um povo único, que é descendente dos Tremembés, que vive, trabalha, guarda e protege todo esse ecossistema. Essa visão é como me coloco e percebo a minha gente, como me percebo como fotógrafo e meu papel neste lugar, pela defesa do território, por uma releitura decolonial de nossa história e pela celebração de nossas tradições.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Como expliquei na pergunta anterior, “Peixes Racionais” é fruto da minha trajetória, na qual fui descobrindo e desvelando questões emaranhadas na nossa história e nossa percepção de identidade. Ao reunir os retratos que realizei durante esses anos, foi impossível não notar a forte presença de traços indígenas na maioria deles. Essa percepção vai contra a historiografia tradicional do Piauí, que diz que o povo indígena no estado foi completamente dizimado, fato refutado por pesquisadores recentes. Essa ideia de genocídio indígena nos foi ensinada na escola, mas é importante perceber que a história indígena não se resume a massacres e dizimações. Embora a violência sofrida não possa ser negada, devemos reconhecer a resiliência, adaptação e resistência desses povos.
“Peixes Racionais” é como eram conhecidos os Tremembés que habitavam essa região há séculos, por serem hábeis nadadores e destros na pesca. Os Tremembés originários do Delta não foram dizimados, adaptaram-se e tornaram-se ribeirinhos. É isso que tento mostrar com este portfólio.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
O portfólio “Peixes Racionais” revelou para mim um recomeço, um novo momento em que me compreendo como um fotógrafo que estuda e faz parte dessa questão. Foi muito importante participar dessa seleção como finalista, um reconhecimento de um trabalho realizado com muitos desafios e dificuldades de ser fotógrafo no Piauí, abordando um tema que desagrada políticos, grandes empresários e famílias influentes na região.
Hoje, meu trabalho está mergulhado nas águas do Delta, que ora é rio, ora é mar. Esta região fascinante, embora única, está fragmentada entre três estados, tornando a união de seus povos em torno de questões comuns uma saga. Entre os desafios que enfrentamos estão o avanço desenfreado do turismo, a pesca predatória e a expansão das usinas eólicas, ameaçando tanto o bioma quanto a rica cultura local.
Estou dedicando meus esforços a um projeto audacioso: um livro de fotografia que mostre a natureza e a vida dos habitantes do Delta, um modo de vida ligado à natureza e ao sentimento profundo do que é o “Delta”, muito mais que um cartão postal. Nessa pesquisa visual, sei que a ancestralidade Tremembé mostrará sua presença nos rostos, nos costumes, e na cultura. O projeto é continuar a questionar, investigar e construir redes para desvelar essa parte da nossa história e identidade.
Acredito firmemente que a compreensão da identidade do nosso povo é fundamental para a união desses povos e juntos enfrentarmos os desafios que se impõe à biodiversidade do Delta do Parnaíba. Por isso, busco financiamento para transformar essa visão em realidade, criando um registro que capture a alma e a resistência desse lugar.