As ditaduras latino-americanas na segunda metade do século XX deixaram um rastro sangrento de prisões arbitrárias, torturas, mortes e desaparecimentos. Esses eventos criminosos foram realizados em porões e masmorras, na calada da noite, muito distante dos olhos e das câmeras. Por isso sobraram poucos registros, um apagamento da história que angustia e nos persegue até os dias de hoje.
Na busca de inventar memórias do que não pôde ser visto, Júlia Milward criou a série “Provas Materiais das Passagens”, que está entre os finalistas do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024 na categoria Ensaio. Por meio de paisagens e vestígios registrados no deserto do Atacama, no Chile, ela desenvolve uma narrativa que nos permite refletir sobre os desaparecidos e assassinados pela ditadura Pinochet. Um trabalho que choca por meio de imagens sutis e alusivas.
Júlia Milward tem uma produção de grande sofisticação conceitual e consistência visual. Descubra um pouco mais sobre seu universo criativo e sobre a série finalista na entrevista abaixo.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Tenho 40 anos. Vivo em São Paulo, cidade esta onde me desemprego.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
A minha dedicação à fotografia tem início no curso de Comunicação Social na Universidade Federal de Juiz de Fora (2003-2007), período em que fui introduzida tanto à técnica e prática analógica em laboratório, quanto a história e teoria da imagem fotográfica. Foi quando também pude experimentar a pluralidade de usos desse meio, partindo do fotojornalismo à fotografia de moda, passando pela publicidade até chegar às artes plásticas. Porém, ao terminar o bacharelado em jornalismo, senti que era necessário encontrar uma formação específica na fotografia. Fui, então, para a Université Paris VIII (2007-2008), onde me graduei em Artes Plásticas (percurso Fotografia) e, em seguida, para a École Nationale Supérieure de la Photographie (2008-2011), em que fui diplomada com menção (BAC+5). Quando retornei ao Brasil, continuei a minha pesquisa no departamento de Artes Visuais na Universidade de Brasília, obtendo o título de mestre (2012-2014) e doutora (2017-2021) pela mesma instituição.
Digamos que esse foi o meu percurso de estudos e pesquisa, mas a fotografia surge para mim no antes, no ponto de início em que começamos a ler as palavras, as imagens e o quintal. Quando eu tinha 5 anos ganhei uma enorme pilha de revistas “National Geographic”. A partir deste momento, o meu mundo passou a girar com as páginas viradas. Povos originários, plantas, pedras, paisagens, prédios, indústrias. Todo um universo lá fora para ser visto. Tanta coisa para registrar e mostrar. Aos 6 anos, pedi uma câmera fotográfica de natal. Eu queria fazer as minhas próprias imagens, como as que via nas “National Geographic”. Obviamente houve uma grande decepção ao receber o pequeno envelope verde com os primeiros registros. As imagens não correspondiam em nada ao que eu me lembrava ter visto pelo visor. A maior parte delas estava sem foco, tremidas, a família encostada no canto do quadro.
Apesar da frustração inicial, a fotografia se tornou o porta-estandarte dos caminhos até então percorridos. O que me encantou e que faz com que a fotografia não se esgote para mim é sua essência múltipla, é o fato dela estar na encruzilhada de diversos caminhos, de ser ao mesmo tempo teórica e prática, de concentrar diferentes usos, de pertencer tanto a arte contemporânea, quanto a mídia, a técnica, a tecnologia, a documentação, a história, a estética, etc. Uma imagem multiuso e talvez seja uma das poucas invenções em que o “3 em 1” efetivamente funcione. Logo, todo o meu trabalho é essa tentativa de apreender, de pensar, de questionar, de refletir sobre uma das facetas desse globo espelhado que é a fotografia. Procuro, assim, encontrar na imagem o suporte de diálogo, uma ligação com as presenças (e ausências) inerentes à essa técnica, pois, afinal, a fotografia é sempre um encontro (e desencontro) com outros e por eles e através deles que ela parte (e chega).
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Iniciei o ensaio “Provas Materiais das Passagens” em 2013, na primeira expedição poética que fiz no Chile. Fui ao deserto atrás de uma imagem, um conceito, um algo que pudesse fazer recordar as vítimas dos governos ditatoriais latino-americanos. Quis inventar uma memória para recordar aquilo que não pôde ser visto. Recuperei os índices encontrados no território compondo uma cartografia edificada pela conjunção entre os passos próprios e dos desaparecidos. Assim, pelo vagar, me propus atravessar o espaço através do aparato fotográfico para arrancar do território as coisas mais ou menos vistas e propor uma narrativa para recordar aqueles foram forçados a partir antes. Esse projeto está também vinculado imageticamente à pesquisa que desenvolvi durante o período de mestrado sobre os álbuns “Excursions Daguerriennes : vues et monuments les plus remarquables du Globe” realizados na América do Sul e que foram encomendados pelos governos locais com o intuito não apenas de gerar o sentimento de patriotismo e fazer ver o país, mas, principalmente, delimitar as fronteiras e guardar aquilo que estava no projeto de destruição da natureza. Porém, no meu caso, ao invés de fotografar o que vai certamente desaparecer via um projeto de destruição, sigo o caminho inverso, registrando o que está para dizer sobre o que não está e os que não estão, proposição em lógica reversa que chamei de “Excursões Reflex”. Essa noção de apagamento, poder e memória está no cerne da minha prática artística onde o ausente sempre é marcado seja pelo corte fotográfico, pelas intervenções nas imagens, pelos materiais de impressão ou, simplesmente, pelo tema.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Admito que sou extremamente lenta na realização e finalização dos meus trabalhos. Demoro anos para tornar uma intuição em projeto. Talvez seja o fato de começar pelas imagens e raramente por um tema específico. Compreendo que elas dizem algo que me atrai, mas que ainda não sei ler, ou melhor, não sei conversar, por isso as mantenho perto e disponível até o momento em que o diálogo aconteça. Por exemplo, atualmente, estou finalizando a diagramação do foto-livro “Todos os caminhos ainda levam a Roma?” (iniciado em 2019, o ensaio discorre sobre a atuação massiva da especulação imobiliária nas grandes cidades e o consequente apagamento das histórias), ao mesmo tempo que tento terminar o projeto “Jogo Americano”, que comecei em 2008 (sobre a inserção das palavras anglófonas e simbologia norte-americana presentes no território sul americano). Desejo também continuar o “Provas Materiais das Passagens” em outras paisagens, pois existem outras valas cobertas a serem reveladas. Ainda há a pesquisa teórica sobre as imagens das catástrofes naturais nas redes sociais e também a que desenvolvo com o grupo Vaga-mundo: poéticas nômades (CNPq/UnB), cujo objetivo é o de aliar a prática artística e a reflexão teórica em projetos geopoéticos coletivos a partir de deslocamentos e expedições artísticas em espaços-extremos.