O primeiro contato de Lucas Kappaz com a fotografia foi durante a adolescência, quando pegou emprestado a câmera de seu avô e levava para o colégio, usando-a para se divertir com os colegas. Tolhido em seu lado artístico pela família, que preconizava ser necessário seguir uma profissão que permitisse “ganhar dinheiro”, ele retornou à fotografia em 2013. O resgate da prática fotográfica foi essencial, uma espécie de terapia. Daquele ano em diante, passou a produzir trabalhos autorais.
Durante a pandemia, Lucas Kappaz iniciou uma série de ensaios com Marion, uma senhora muito comunicativa, que passava parte do dia na portaria do prédio puxando conversa com outros moradores. Os dois se tornaram amigos e daí nasceu uma série de retratos inusitados. Intitulado Marion – Só Coisa Boa, o Portfólio de Lucas Kappaz é um dos finalistas do Prêmio Portfólio FotoDoc 2023.
Conheça esse trabalho e outras atividades criativas do fotógrafo.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Tenho 37, ainda em dúvida se a vida vai começar em 3 anos, ou se já vivi muito. Nasci e moro em São Paulo, no Paraíso, mas longe dos céus. Mau menino de boa família, o primo pobre que é grato pelo teto que a vida me deu. Essa vivência me permitiu saber transitar entre mundos, o meu e o dos endinheirados. Hoje me dedico à fotografia e busco meu espaço no audiovisual. Gosto e procuro trabalhos em que posso usar a experiência que tive em publicidade e processos criativos e editoriais.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Tem algo geracional de pessoas que conviveram com o analógico, tiveram suas primeiras câmeras, revelam e viram surgir, junto do barulho de conexão do modem, uma transformação para o digital. Só queria clicar. Juntava os filmes e quando dava, minha mãe pagava as revelações. Esse foi o incentivo que ela me deu. Foi nesse período que ganhei minha primeira câmera. Batizada com cliques internacionais, era uma saboneteira Samsung que meu avô usava em viagens. Eu tinha paixão por usar qualquer eletrônico dele. Era um grande companheiro, então ia na sua casa e ouvia um discman, utilizava o videocassete pra ver filmes à tarde, me prendia na televisão da sala vendo Nickelodeon na TV a cabo, e me perdia numa Telefunken velha que ficava sob a escada. Mas eram todos periféricos de outras coisas que estavam disponíveis pra mim. Menos a câmera. Fui agraciado com esse presente, que era ouro. Logo tirei uma foto sua, levantando a mão parecendo dizer em um forte sotaque árabe, algo como “Non vai tirar futo assim”. Não me lembro bem, mas tenho essa imagem do lado da minha mesa.
Comecei um gasto de filmes com fotos de paredes e tetos e pessoas ao meu redor. Plantas desfocadas em casa. Escondida no colégio. Jovens usando entorpecentes em sala de aula. Colegas zombando de imagens sacras em colégio católico. A surpresa do flash era o que me fascinava. A reação das pessoas, muitas vezes iradas com a audácia da criança. Para mim aquilo era um território. Um local seguro. Me escondia atrás do viewfinder. Me sentia adulto. Operando um maquinário de extrema complexidade aonde simplesmente apertava um botão. E era isso mesmo. Não tinha olhar, enquadramento, luz. Era só um botão e uma caixa preta. Fiz isso por alguns anos. Mas, adolescência terminando, faculdade, carreira e lógico, dinheiro. “Quero fazer cinema” eu dizia “Ou fotógrafo de revistas”, referências bem vívidas nos anos 90. Mas não. “Você precisa de uma carreira que te dê dinheiro”, “Jamais pagarei faculdade de cinema” e respostas do tipo.
Bom precisava de dinheiro mesmo, mas sabia que tinha aptidão pra advogado ou engenheiro ou Técnico de Processamento de Dados. Eu queria ser artista, só não sabia como. Nunca fui incentivado pra isso. Era um crime pensar nisso. Porque não dava dinheiro. Talvez, se meus desenhos mostrassem potencial. Mas eram só rabiscos de expressões que me permitiam fugir pra algum lugar, por um tempo, nesse ambiente. Mas tinha um leve toque pro mercado criativo. Trabalhava em lojas, negócios de familiares e restaurantes, e abandonei a câmera. Segui em agências, traçando um caminho com poucos destaques mercadológicos ou gerenciais, aguentando todos os clichês que ouvimos dessa área.
Então próximo à 2013, eu estava infeliz, com gastrite, e praticando zero do meu suco criativo. Minha solução foi o resgate da felicidade (nome que ainda pretendo usar em um projeto). Voltei a ouvir, ver e escrever o que me dava tesão. Com a fotografia foi essencial. Não só pelo resgate, mas porque eu tinha perdido minha expressão, minha vontade de conectar como mundo, estava perdendo grande parte da minha essência. Ela foi uma ferramenta terapêutica, de verdade, incentivo da maravilhosa terapeuta que eu tive inclusive, devo muito à ela. Ainda hoje eu fotografo pra ter certeza que existo. Não sei se existo ou sou fruto da sua imaginação. A fotografia me garante isso.
Algumas imagens só eu poderia ter feito. Eu sei que essa parte de existir e tal é um clichê, mas eles o são por um motivo. Eu tenho fome de capturar imagens. Muitas vezes clico sem pensar e hoje isso tem mudado, ganhado mais corpo. Percebo que uma lente apontada aleatoriamente na sua cara não é agradável, mas não ligo se for o que eu quero naquela hora. Isso me ensina a dirigir e acalmar quem está perto, pra conseguir um retrato que quero. Na verdade, tirar emoções é mais interessante. Na fotografia de rua é mais sobre caçar ou pescar. Caçar andando atrás de um momento, ou parar em um fundo bonito ou luz bonita e esperar pra fisgar uma foto. Nunca saia de casa sem câmera.
Ganhei uma Canon AE1 e uma Nikon D60. Foram minhas primeiras câmeras de verdade. Não sabia fotometria. E numa viagem, conhecendo um fotógrafo com uma trajetória parecida saindo de marketing, mas bem mais assertiva, aprendi os fundamentos, técnicas, e o melhor de tudo, referências. Um novo caminho de fotolivros, documentários, exposições, projetos e ensaios. Minha primeira paixão oficial foi Martin Parr. Como faço isso? Como ganho corpo pra jogar um flash na cara de alguém? Só sair pra rua? Sim e não. O documentário “everybody street” foi essencial pra entender como movimento. Me fez envolver com pessoas que gostavam do mesmo tema. Já acompanhava o coletivo SelvaSP, um dos importantes da cena de rua de São Paulo e outras postagens em Tumblrs da vida. Acabei conhecendo e fazendo amizade com alguns deles. Mas ainda era freela de Planejamento Estratégico e Criativo.
Até que busquei estudar luz de estúdio e fui trabalhar em um. Aquelas encruzilhadas da vida colocam assim: Há aqui um passo lógico para sua carreira, cargo e salário maiores, OU, trabalhar com sua paixão. Sanguíneo que era, optei pela segunda opção. Tinha um dinheiro guardado e uma situação que me permitia tomar esse caminho. A partir daí desenvolvi meus trabalhos pessoais, buscando aonde me encaixar profissionalmente num mercado extremamente saturado. Ainda sigo nessa busca, mas tenho certeza que na expressão, trabalhos autorais e vida, a câmera nunca vai me abandonar, nem eu a ela.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2023. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Tenho pela Marion um carinho único. Entre 2016 e 2017, deixei de ser Sanguíneo pra ser Melancólico. Poucas coisas faziam sentido, não me firmava em um trabalho e um término de relacionamento me acometeu em uma depressão profunda. Não por ele, mas essa foi a gota pra raspar a última molécula de serotonina que ainda fazia carreira solo no meu cérebro. Antes de iniciar um tratamento, eu não queria falar com ninguém, nem ver ninguém. Se você fosse humano era provável que eu quisesse sua extinção imediata e meu rosto pra você era de completo desgosto e ojeriza. Eu tinha acabado de perder o que considerava a última chance de trabalho e a ilusão da única pessoa que tinha amado.
Mas no meu prédio, tinha uma senhora que ficava na portaria, e conversava com todos. Mas conversava mesmo. As pessoas do prédio a evitavam de certa forma. Falavam que ela tinha alguma doença. Então eu que não falava, resolvi ouvi-la. A única doença que ela teve foi uma batalha pelo câncer, e claro, os problemas que a idade pode trazer. Ela queria atenção. Marion é uma mulher interessantíssima. Fala várias línguas, aprendeu Tailandês em Holandês e conta roteiros de filmes como se fossem suas histórias. Você se perde no meio de fantasia e realidade. Tudo vale. Seu humor é fortíssimo e ela é extremamente carinhosa. Tem um filho e um neto. E um irmão gêmeo que a levava aos sábados para passar o dia no Graal. Acumuladora, ia antes da pandemia constantemente no supermercado ao lado do prédio, e sempre me trouxe presentes com detalhes sobre câmera e fotografia.
Viramos amigos, confidentes e eu a ajudava com o que podia morando lá. Me interfonava pra prender uma cortina ou pra mostrar sua fantasia de Halloween, que consistia em apenas prender o cabelo na frente do rosto. Era ela de bruxa, dizia. E assim saiam ensaios. Nos falamos até hoje, mas ela ainda tem medo de receber visitas por causa da sua saúde, consequência da pandemia. Marion além de amiga, ocupou um espaço de avó, com comidinhas e carinhos. Eu amo a Marion.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Meu principal projeto hoje sou eu. Acho que cuido de mim pela primeira vez na vida. Descobri uma auto-estima que estava escondida. Busco trabalhos que eu possa usar toda essa experiência. Já trabalhei em estúdio, fotografando ou assistente. Já fiz eventos, shows, casamentos e todo aquele caminho de fotógrafos para se sustentar. Tive oportunidades em fotojornalismo e acompanhando políticos.
Mas na fotografia autoral sigo na rua, sempre. Estou atrás de patrocínios em projetos com fotografias instantâneas para montar um baralho. Tenho o “Fábrica de sonhos” que já consegui com uma imagem, traduzir um sonho de uma pessoa e quero mais ideias. Fiz um calendário com outros fotógrafos em 2019, que não foi bom, porque eu contava com o presencial para vender. “Aparecidas” é um trabalho que exploro a doença da minha mãe, e imagens de nossa senhora, as duas se chamam Aparecida. “Alpha by Night” é o trabalho de vida noturna e também um de banheiros.
Além de retratos e um projeto sobre intimidade e todos que fotografei. Mas o projeto atual que mais tenho me dedicado chama provisoriamente de “40”. São 40 textos, 40 ensaios e 40 coisas que aprendi durante quase 40 anos. Bom, tenho aí dois anos pra fazer. Acho que dá tempo.