Após passar por um processo depressivo profundo, decorrente da recordação de um trauma de infância, Mari Gemma De La Cruz decidiu vivenciar novas experiências ligadas à criação artística. Nesse processo, ela redescobriu a fotografia, forma expressiva que já havia praticado. Quando completou 50 anos de idade, trabalhando como farmacêutica no serviço público de urgência e emergência, ela decidiu que dentro de cinco anos, quando chegasse a aposentaria, migraria de profissão e se tornaria uma artista em tempo integral.
Há pouco mais de uma década, Mari Gemma De La Cruz vem produzindo trabalhos artísticos com o uso da fotografia. Sua produção tem como foco o questionamento de padrões hegemônicos de beleza feminina. Na série “Peito de Pedra”, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024, ela produz colagens compostas de retratos, elementos naturais, imagens cientificas e escritos, para propor uma reflexão sobre o corpo feminino e os estigmas sexistas e machistas que se impõem a ele. As imagens resultantes têm uma textura única e uma coloração ocre, que confere homogeneidade à série.
Descubra mais sobre seu universo criativo na entrevista concedida ao Festival FotoDoc.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
61 anos; Vivo e trabalho em Cuiabá, Mato Grosso.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Aos 47 anos eu passei por um processo depressivo profundo, que me impediu de trabalhar, devido a recordação de um trauma devido ao abuso sexual sofrido na infância e que eu havia esquecido por 40 anos. Para começar a me adaptar novamente ao mundo, após a síndrome do pânico, eu comecei a frequentar um espaço cultural em Cuiabá e fazer oficinas, entre elas oficinas de fotografia. A partir de então, comecei a vivenciar um outro mundo ligado à arte onde eu podia expressar meus sentimentos e ideias. Como sempre gostei de estudar para entender a mim e ao mundo, fiz o mesmo, de forma já autodidata, para entender qual o sentido da arte em minha vida.
Hoje entendo que eu faço arte pra descobrir o que penso sobre as coisas que não entendo e a partir do entendimento o processo de dor se dilui.
Foram diversas expressões artísticas que fui experimentando até chegar na fotografia.
Quando comecei na fotografia, foi com uma máquina analógica (1994), com finalidade científica, pois precisava documentar as plantas medicinais e os raizeiros, durante o mestrado. Foram centenas de clichês e eu não tinha noção alguma sobre enquadramento, iluminação etc. Agia de forma intuitiva, buscando exemplos em publicações científicas da área estudada.
No dia em que fiz 50 anos e faltando 5 para me aposentar, ao chegar no meu trabalho como servidora pública (trabalhava como farmacêutica no serviço público de urgência e emergência) me perguntei se eu queria continuar nesta função e se isso fazia sentido em minha vida. A resposta foi negativa. Então, o próximo passo seria fazer um planejamento estratégico para mudança de carreira profissional, a fim que após os 55 anos eu já pudesse estar atuando como artista profissionalmente. É claro, que durante o tempo de transição, comecei a definir qual seria minha expressão artística, a fotografia, e como deveria fazer para que meu trabalho pudesse ter alguma relevância e notoriedade.
Para mim, a vivência do processo criativo é uma catarse, uma forma de me libertar e resgatar o valor da vida, esperando proporcionar ao espectador transformações emancipadoras, com possibilidades de vivenciar outras experiências que fogem ao modelo socioambiental vigente e hegemônico.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
A construção da identidade do sujeito, e neste trabalho relativa ao corpo da mulher, é definida pela subjetividade em suas múltiplas dimensões e são separadas didaticamente em categorias (biológica, social e cultural, como idade, gênero, etnicidade e classe) e que se inter-relacionam resultando numa complexa formação identitária, embora com tendências a homogeneização decorrentes do processo de globalização.
No ensaio Peito de Pedra instigo a reflexão sobre o corpo feminino e os estigmas sexistas e machistas que se impõe a ele na formação da identidade da mulher reproduzida: no modelo renascentista do corpo clássico e perfeito; na obscenidade imposta à nudez, confinada a espaços delimitados pela moral judaico-cristã; na alienação da produção dos sentidos do corpo e sua objetificação; na colonialidade das relações das mulheres sul-americanas.
A mídia apresenta um discurso onde as imagens propõem uma modelagem dos corpos, sujeitando-os a uma certa representação do feminino, criando paradigmas físicos, morais, mentais, cujas associações tendem a homogeneizar o “ser mulher” através de padrões que hoje se encontram disseminados a partir das relações de colonialidade e assim os produtos destinados ao público feminino desenham, em sua construção, o perfil de suas receptoras.
O corpo tecnológico remodelado através de cirurgias e implantes, segue este padrão cujas imagens povoam as revistas que copiam o modelo norte-americano, numa economia de trocas representacionais para a América do Sul, construindo práticas resultantes deste colonialismo. Existe um esforço de pertencimento e identificação a um grupamento social de referência, composto por pessoas que detêm ou se esforçam para manter o corpo nos padrões ideais de beleza vigente.
O desejo de liberdade que marcou o ideal feminino de emancipação, que, por sua vez, alicerçou os movimentos feministas, tem sucumbido à ditadura de uma estética corporal que se opõe veemente à obesidade e ao envelhecimento. O feminismo decolonial promove a crítica urgente contra a universalidade imposta pela modernidade colonial, reivindicando intersecções de gênero, raça, classe e sexualidade.
Uso a estética deste ensaio para me auto representar e a outras mulheres produzindo uma fricção surgida do contato entre performance, imagem e poesia, a partir de meus conflitos pessoais possibilitando a existência de um território próprio. As imagens são: autorretratos e retratos de mulheres, produzidos em longa exposição; reflexos em fragmentos de espelhos de esculturas, encontradas em museus e ruas de vários países; paisagens e objetos encontrados na natureza; e poesia autoral.
Para conhecer mais sobre o processo criativo veja a puiblicaçao em: https://www.upo.es/revistas/index.php/atrio/article/view/4523/4040
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Realizo trabalhos, quase que simultaneamente, ora em ambientes internos ora externos, de forma solitária e intimista, o que permite a alternância necessária para a decantação emocional e a recuperação do meu corpo.
Atualmente, trabalho nos projetos: – O casamento da Mãe d’Água; – Destempo: entre memórias, migrações e cura; – Mulheres e plantas daninhas. Entretanto neste ano de 2024, devido a seleção em diversos editais no estado de Mato Grosso (3), do município de Cuiabá (2) e da Funarte Artes Visuais, o desenvolvimento destas pesquisas, embora bem adiantadas e com seleção de obras em convocatórias nacionais, estão temporariamente desaceleradas. Neste ano de 2024 fiz uma exposição individual com a série “Anfêmera – O mistério das coisas banais na envelhescência feminina”, lancei o livro de artista “Tribo Luminescente” e em agosto devo lançar o outro livro de artista ”Porto Cuiabá – Cartografia afetiva de um território marginal”.
Enfim, muito trabalho pela frente…