Fotógrafa e indígena Tentehar-Guajajara, Mi’saw Zàwàruhu carrega em seu olhar a missão de reconstruir, através das imagens, os fragmentos da memória e da identidade. Nascida no Maranhão e radicada em Recife, sua neurodivergência a faz enxergar o mundo em camadas de luz, textura e composição, transformando a fotografia em um poderoso ato de reconexão com suas raízes e de preservação da cultura indígena.
A imagem “Sob a luz da Encantaria“, finalista na categoria Imagem Destacada do Prêmio Portfólio FotoDoc 2025, é um testemunho desse propósito. Realizada durante o ritual do Menino do Rancho do povo Pankararu, em Pernambuco, a fotografia captura a presença sagrada dos Praiás Encantados. Mais do que um registro documental, a imagem é uma experiência espiritual, uma tentativa de traduzir em luz e sombra o inefável sentimento de pertencimento e reverência. O trabalho sintetiza perfeitamente o estilo da fotógrafa, que habita o encontro entre a ancestralidade e o presente, dando função narrativa e estética à memória.
Na entrevista a seguir, Mi’saw Zàwàruhu compartilha sua jornada de reencontro e como planeja usar a fotografia para plantar uma floresta de memórias para as futuras gerações.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
35 anos recém-feitos. Moro e trabalho em Recife/PE (e onde mais a oportunidade chamar!), mas sou nascida e criada no Maranhão. Embora tenha crescido fora do território indígena de meu povo, minhas raízes sempre estiveram lá e foi nelas que reencontrei quem eu sou.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Antes mesmo de entender o que era “fotografia”, eu já sentia necessidade de guardar o mundo dentro de um quadro. Na infância, com minhas câmeras de brinquedo, fazia autorretratos, fotografava a natureza e as paisagens, era o meu jeito de congelar o tempo e preservar memórias.
Por ser neurodivergente (com diagnóstico tardio de TDAH, Autista e AH/SD), costumo dizer que enxergo o mundo em “takes” e “enquadramentos”. Tudo tem mais camadas do que aparenta à primeira vista: a luz, a textura, as cores, a composição, cada detalhe importa. Fotografar é uma forma de dar corpo ao que sinto, de guardar a intensidade de cada instante.
Minha história pessoal também molda profundamente meu olhar. Sou uma pessoa indígena que foi adotada, cresceu fora do território e passou anos em busca das suas raízes. Assim como precisei reconstruir os fragmentos da minha identidade arrancados pelo silêncio e pelo tempo, minhas fotografias buscam registrar fragmentos de memória para que não se percam. Fotografar, para mim, é também um ato de reconexão e preservação.
Com o tempo, comecei a considerar a fotografia como profissão. Ainda não vivo financeiramente dela, mas é um dos meus objetivos. Também carrego um cuidado: transformar algo que é propósito de vida em fonte de renda exige atenção para não perder a paixão e a paciência que o registro fotográfico demanda. Gosto do significado literal de “fotografia”, escrever com a luz. É mágico observar o mundo como quem quer descobrir o novo todos os dias.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2025. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Essa fotografia foi feita em novembro de 2023, no ritual do Menino do Rancho, tradição do povo indígena Pankararu, em Pernambuco. Fui convidada por um dos vice-caciques da Aldeia Brejo dos Padres para fotografar e gravar o ritual, o que foi uma grande honra para mim.
A imagem mostra os Praiás Encantados, figuras sagradas para o povo Pankararu. Apesar de pertencer a outro povo, os Tentehar-Guajajaras, tenho profundo respeito e gratidão a essas entidades. Estar presente nesse ritual transformou minha vida pela espiritualidade.
Essa foto tenta dizer o que as palavras não alcançam. É um registro do que não se vê, mas se sente. Assim como reconstruí minha própria história a partir de fragmentos, busco, através da fotografia, preservar pedaços de memória e ancestralidade que o tempo poderia apagar. Meu estilo está no encontro entre a ancestralidade e o agora, onde a estética ganha narrativa e função.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Atualmente, retomo a fotografia após um hiato necessário para recalcular a rota. Quero solidificar meu trabalho como fotógrafa documentarista, registrando principalmente a memória e a ancestralidade indígena. Meu olhar fotográfico é um dos legados que desejo deixar. Cada imagem é também um pedaço de mim, um registro para além da minha matéria.
Fotografo como quem limpa o terreno e ara a terra, para só então plantar. E quem planta precisa ter atenção, cuidado e paciência. Afinal, não se planta uma floresta do dia para a noite.