A produção artística de Sandra Gonçalves é composta por imagens que afetam e que refletem sobre a gravidade dos tempos atuais. Exemplo eloquente dessa potência é a série Capsula, finalista na categoria Portfólio do Prêmio Portfólio FotoDoc 2023.
O trabalho, fruto em grande medida de uma visita aos arquivos da artista, nos convida a adentrar os confins de uma realidade escondida, porém muito próxima e presente: a das carvoarias urbanas. Nascido a partir de uma pauta fotográfica feita para a extinta Revista Manchete, mostra trabalhadores e ambientes dessas carvoarias, que trazem marcadas em seus rostos, corpos e espaços as consequências dessa atividade.
Sandra Gonçalves é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde ensina e orienta trabalhos fotográficos. Também leva uma intensa atividade criativa, marcada em anos recentes por um projeto intitulado Imagens do Desassossego, que trata das consequências da covid-19, e outro intitulado Lugares Inventados, que reflete sobre um mundo em convulsão e mutação. Aprenda um pouco mais sobre sua forma de encarar a atividade criativa e de produzir imagens que inquietam.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Nasci na cidade do Rio de Janeiro, à meia-noite de um dia de maio de um ano qualquer do século XX. Atualmente moro e trabalho em Porto Alegre, RS. Sou artista visual, professora e pesquisadora na área da Fotografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dessa forma, vivo a fotografia em tempo integral.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Comecei a fotografar na Faculdade. Mas, antes disso, pintava. A fotografia me permitiu ir além e com a pintura. Meu olhar documental recebeu respingos dos grandes mestres tanto da pintura quanto da fotografia, tudo isso alimentado por leituras dos mais variados gêneros que alimentavam minha mente inquieta. Na faculdade fiz o Curso de Comunicação Visual, atual Design, na Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Meu primeiro professor de fotografia foi Pedro Karp Vasquez, um incentivador do meu trabalho. Meu TCC foi um audiovisual sobre crianças em situação de vulnerabilidade Social. Esse trabalho esteve entre os selecionados numa mostra de audiovisual na Funarte (RJ). Participei da última turma de trainee em fotojornalismo da extinta Revista Manchete (1995).
Uma pauta, durante o período na revista, sobre trabalho me levou a tomar contato com carvoeiros na cidade – o ofício estava inscrito na pele. Alguns anos depois, dei prosseguimento a esse trabalho.
Como professora, realizo um trabalho de partilhamento do olhar. Tento despertar em meus alunos a mesma paixão que tenho pela imagem e as possibilidades de criação que elas nos proporcionam.
Como fotógrafa e artista vivo intensamente o presente. Busco com meu trabalho despertar um desassossego, um desejo de mergulhar no mundo e nas questões nevrálgicas do contemporâneo.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2023. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Na pergunta anterior, começo a responder um pouco isso. É um trabalho Documental Social. Sua construção atravessa alguns anos, visto que nenhum trabalho está pronto. Revisitar os arquivos, encontrar imagens esquecidas que se tornam protagonistas no distanciamento permitido pelo tempo é um eterno devir para essas imagens e seu conjunto. E, no entanto, tudo está no mesmo lugar.
O projeto apresentado tem como origem carvoarias no Rio de Janeiro que, insuspeitas, se escondem nas ruelas da cidade (Carvoarias Urbanas). No encontro da cidade com os carvoeiros duas temporalidades se cruzam: o tempo da cidade, marcado pela velocidade, pela aceleração dos passos e dos carros e um tempo mais lento, próprio, representado pelas carvoarias urbanas, um tempo cumulativo, sedimentar que se adensa nos corpos, nas paredes, nos ladrilhos que ainda recobrem o chão. O ofício de carvoeiro está exposto na pele, denominador comum que a todos iguala, e entranhado nos pulmões, depósitos vivos de alcatrão. O que cerca o mundo do carvão é o “politicamente incorreto”, aprisionando os carvoeiros num presente que não finda, apartando-os da velocidade do tempo urbano, ao qual servem, mas do qual não participam.
Então, o trabalho proposto recorta o original, marco na fotografia praticada por mim, finalizado nos anos 2000 e ao mesmo tempo acrescenta novas imagens, criando uma nova narrativa visual. A edição e montagem busca criar novas relações entre as imagens configurando e possibilitando novas construções de sentido. O confinamento e a escuridão, a falta de perspectiva desses indivíduos se faz presente em fragmentos de seus corpos bem como no ambiente e objetos que os rodeiam. Todavia, a beleza também se faz presente.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Sem exagerar, a expressão através da fotografia é o meu ar. É meu presente e futuro, é o meu agora. Além das aulas e da pesquisa na universidade, faço parte de um projeto de extensão na UFRGS onde praticamos e estudamos processos históricos de impressão fotográfica. Atualizo essas técnicas e as incorporo em alguns trabalhos que desenvolvo. O grupo existe desde de 2016.
Com a pandemia e o confinamento proporcionado por ela, lancei mão de meus arquivos de imagens e os ressignifiquei criando uma grande série que chamo de Imagens do Desassossego.
Imagens do Desassossego, agora transformadas em uma única grande série narrativa, começaram concomitante ao surgimento da Covid-19. Cada uma das séries produzidas (entre 2020 e 2023) é consequência uma da outra e amplia as questões que vão sendo abordadas. De certa forma, elas refletem, no tempo real do período, sobre os males, de todas as ordens, que foram agravados pelo planeta. Divido a narrativa apresentada em três blocos: a crise inicial causada pelo confinamento e pelo medo, que chamo de Caos, epicentro do período pandêmico. Continuo com um bestiário contemporâneo, onde deslizo para a questão feminina e continuo com o Desassossego, no que chamo de pós-covid.
No primeiro bloco, Caos, o tema principal é o do isolamento humano derivado da fragilidade do corpo e consequente perda de mobilidade. Tal isolamento é perceptível nos corpos envelhecidos e frágeis dos idosos. Porém, no período aqui abordado, esse isolamento e confinamento estendeu-se a todo o corpo social, refém de um vírus (COVID-19) que paralisou e confinou milhões em seus espaços de convivência.
As janelas de suas casas se tornaram seu acesso ao mundo, um mundo visto através de filtros de dor. Tal filtragem se dá a partir de imagens radiográficas de corpos expostos do avesso (sobre paisagens), revelando a matéria frágil de que somos feitos. Com a COVID-19 nos tornamos corpos passivos apavorados por um mal invisível, presos no caixilho de uma janela. Espectros de dor e morte espreitam cada movimento fora deste quadro.
Fugir do medo e do caos torna-se impossível, mesmo em sonhos e viagens imaginárias, o espectro do medo e da morte é constante.
O segundo movimento diz respeito às primeiras pesquisas em busca de uma vacina contra o vírus da covid-19 e se debruça sobre um bestiário contemporâneo. Mais do que nunca, as formas de vivenciar o mundo pareciam passar por poderosos filtros que modificavam nossa visão do agora.
Tais filtros pareciam e parecem ter a função de oferecer uma visão de mundo por vezes muito distorcida, baseada em crenças e não na experiência fenomenológica de estar no mundo. Desta forma, surgem medos irracionais, barreiras e muros crescem por toda parte e começam a separar os considerados de dentro dos considerados de fora. O mundo torna-se binário, excluindo os que não se enquadram, os que fogem da norma estabelecida. Os nacionalismos florescem em todo o mundo, as democracias sufocam e com isso os ganhos civilizacionais também se vão. Esta forma de estar parece ter-se aprofundado em resultado do choque provocado pela COVID-19. Líderes totalitários e messiânicos surgem como condutores de uma multidão aparentemente insensata que precisa de um Pai Grande.
A irracionalidade e a tirania assumem o primeiro plano e a adesão ao tirano torna-se um ponto de fuga mortal. Um suicídio moral e coletivo tinge o planeta de vermelho. A paixão e o desejo, o instinto da vida, são traídos e suplantados por Tanatos, a morte.
O aparentemente doce canto da sereia não o é, pelo contrário, é frio, sarcástico e calculista. A multidão vai à loucura. Assim, através de imagens banais do cotidiano das pessoas comuns, de fatos históricos inexplicáveis sobrepostos a outras imagens, principalmente imagens de caráter religioso, mítico e místico, busquei provocar um deslocamento do olhar, um desvio do observador da imagem para chamar a atenção para o agora e tentar provocar um desengajamento, quem sabe, reverter, mesmo que minimamente, o movimento entrópico que se acelera no planeta. Acho que estamos passando por um grande transtorno. Coloco nesse segundo bloco a questão feminina porque acredito que ela deriva desse bestiário contemporâneo.
Tudo Dança, Transmutação é sobre mulheres e seu estar no mundo em um período tão estressante. Neste contexto, as mulheres têm sido uma das maiores vítimas. No Brasil, por exemplo, o número de feminicídios e agressões a mulheres tem crescido significativamente. Tais mulheres são vítimas de uma sociedade doente, machista, egóica e destrutiva que não respeita as diferenças e não aceita a rejeição dos outros, principalmente das mulheres. Vivemos um incômodo e a figura feminina nesse contexto sofre injunções de toda ordem. No entanto, é também daí que vem a sua força. O vermelho que tinge as imagens é o sangue derramado pelas mulheres, seja o sangue menstrual, outras dores físicas ou psicológicas, ou o sangue causado pelo agressor. As imagens que trago falam de um passado e um presente que oprime mulheres de todas as etnias, sejam elas cis ou trans. Nas imagens aqui expostas, muitas vezes os corpos são mostrados nus e lascivos em uma afronta às instituições machistas, formadas ao longo da história escrita por homens. Queimadas, açoitadas, abusadas durante séculos, nesta obra as mulheres mostram seus corpos, superfície carnal em disputa.
Elas parecem estar presas ao modelo dado a elas pelo opressor, mas são livres e o vermelho é também a ira de Lilith contra seus algozes. Lilith foi a primeira esposa de Adão que, segundo a tradição, no ato sexual se recusou a ficar por baixo e exigiu os mesmos direitos de Adão, sendo expulsa do paraíso como um demônio. As mulheres, nesta série, afirmam-se e referem-se, com alguma ironia, a uma história de submissão.
O terceiro bloco ou movimento, que chamo de Desassossego, é resultado da minha reflexão e produção artística sobre as sensações, percepções e afetos provocados pelo vírus Covid 19 e suas mutações no corpo social. Enquanto artista, afetada por estar num mundo aparentemente à deriva, fui tomada pelo desassossego e pelo medo face a este inimigo mortal e invisível, bem como a todo o mal que lhe está associado e por ele exacerbado. A situação a que me refiro é a do pós-covid-19 (o tempo em que vivemos) e as suas consequências ou as constatações que provocou.
A cultura, chamada Ocidental, e aqui digo Ocidental, não como localização geográfica, mas como modo de ser, estar e agir vinculado às forças do capital; tais modos estão pulverizados em todo o planeta em núcleos de poder econômico, social e cultural, tal civilização perpétua e amargas divisões e cisões entre os seres humanos. O fenômeno da Covid-19 e suas mutações paradoxalmente tornaram esses comportamentos cada vez mais radicais. A diferença, mais do que nunca, tornou-se algo a ser silenciado.
As minorias, em termos de detenção do poder, como as mulheres, os desviantes, os pobres, têm seus discursos minados por governos déspotas e pela máquina econômica que os acompanha. A natureza, nosso maior bem e fundamental para nossa sobrevivência no planeta, é diariamente saqueada por uma máquina mortífera que, além de devorar tudo em seu caminho, no processo, devora a si mesma e se reinventa. O que restará? Essa pergunta me deixa em estado de permanente inquietação e o que me resta é o delírio. Tal delírio é feito de imagens onde tempos e geografias se sobrepõem e o humano orbita como um fantasma.
Por fim, chego a uma nova série ainda em construção, Lugares inventados. Com olhar sobre o mundo com influência surrealista e refletindo sobre os desencaixes provocados por um mundo em convulsão e mutação, lanço mão de imagens que constroem um mundo insólito, atraente e assustador. Penso criar uma atmosfera de suspense onde as coisas parecem deslocadas de seus ambientes originários. Penso que busco um realismo fantástico ou um neossurrealismo acompanhado de um permanente desassossego.