Entre o cume e o abismo, entre o branco intacto da neve que cobriu a infância e a pedra desgastada de um presente artificial, abre-se um hiato. Uma fenda brutal no tempo. Um silêncio que não é paz, mas ruptura: onde houve neve, agora há apenas pó. Onde houve descida, agora há desfiguração. É nessa brecha que se inscreve este trabalho fotográfico: não apenas como denúncia, mas também como luto. Uma elegia visual ao corpo da montanha, à sua memória ferida, ao seu desgaste lento e à certeza da sua finitude.
A motivação nasce das entranhas do arquivo familiar de Filippo Poli e da vontade de documentar a anatomia ferida dos Alpes, entrelaçando sua biografia íntima com a geografia devastada do lugar. O autor regressa com o filho ao local onde tudo começou — o Vale de Aosta — Cervinia, 1983 — mas a paisagem não responde. A montanha que moldou seu imaginário já não está. Restam apenas fragmentos, vestígios, estruturas fósseis de uma promessa não cumprida. Ali onde gerações anteriores aprenderam a esquiar, outras não terão onde cair. Como arquiteto, Poli reconhece nessa mutação não apenas um espaço cultural: a relação entre a paisagem herdada e as formas que a deformaram atravessa-o, pois nela se cifra também uma perda pessoal.
As imagens que compõem este projeto habitam múltiplas camadas de tempo. Há um ontem revelado em negativos a preto e branco: a infância, os gestos rituais, a cordilheira como refúgio e narrativa. Quando deslizar e traçar o caminho era quase um ato espiritual. A neve não era apenas matéria: era promessa, raiz, pertença. Esse território nevado, íntimo e acolhedor, parecia suspenso numa eternidade luminosa. O enquadramento de cada fotografia importa: cada imagem do álbum familiar é um quarto onde se guarda uma forma de estar, de olhar, de cuidar.
O presente, por sua vez, irrompe em cor, mas está ferido. O gesto agora é técnico, repetitivo, forçado. Uma barragem artificial deforma a encosta, retendo o que antes caía livremente. A estação já não se vive: simula-se. As vistas tornaram-se um deserto de blocos de cimento, mangueiras enroladas e tubulações metálicas. Onde antes havia rito, agora há mecânica. Contudo, o álbum familiar e o olhar atual não constroem uma narrativa linear. Não se olham com ternura: confrontam-se. O que se expõe não é uma simples transformação, mas uma perda de sentido. Aqueles picos que desenharam um horizonte robusto são agora um sintoma de fragilidade. Um sinal de alerta. E os dados confirmam a ferida. Na Itália, até hoje, 265 instalações de esqui jazem abandonadas. Na temporada 2021–2022, 90% das pistas utilizaram neve artificial. Para cobrir um único hectare, são necessários um milhão de litros de água: o equivalente ao consumo de 10.000 pessoas. Constroem-se reservatórios circulares — 165 até 2025 só na Itália — para alimentar uma ilusão efêmera que dura apenas alguns meses. Não são lagos: são cicatrizes abertas sobre o terreno. Não são soluções: são intervenções cirúrgicas num corpo já exausto.
O topônimo “Alpes” pode derivar de albus, branco, ou de alp, pedra. É nesse cruzamento semântico que habita o coração de HIATO ALPINO: entre a brancura que vestia a superfície e a dureza do que emerge quando o véu se dissolve. Aquele esplendor sublime que abraçaram os que vieram antes deu lugar a uma sombra de suspeita e inquietação. O que antes parecia imortal hoje revela sua inconsistência: glaciares que recuam, neve que não chega, máquinas que fabricam o inverno onde já não há transições.
E, no entanto, a possibilidade de olhar persiste, ainda que atravessada pelo trauma de um ambiente natural vulnerado e domesticado. Recordar torna-se um ato complexo, tenso, carregado de nostalgia e perda irreparável. As fotografias não buscam consolo, mas despertar uma consciência incômoda. Não romantizam um passado idealizado, mas interpelam-no a partir de um presente hostil. O que está em jogo ultrapassa a crise ecológica: é uma questão ética. Como amar um território que se destrói em nome do progresso? Como transmitir um legado quando a paisagem que forjou nossa identidade já não existe, ou se tornou inabitável?
Hiato Alpino é uma tentativa de resposta. Não um encerramento, mas uma fissura aberta. Um gesto de atenção ao que se desmorona. Uma forma de luto que se transforma em resistência poética: porque, embora a neve já não saiba a neve, ainda é possível olhar. Ainda é possível lembrar. Este projeto agarra-se a essa possibilidade. E nesse gesto, mínimo mas firme, a neve torna-se palavra.
Torna-se ato. Torna-se permanência. Ainda, talvez, haja tempo.
© Mireia A. Puigventós








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