Aos 51 anos, a curitibana Débora Ling transformou sua câmera em passaporte para mundos imaginários que a acompanham desde a infância. Advogada que redescobriu na fotografia uma linguagem de liberdade, ela constrói uma trajetória singular como fotógrafa viajante – percorrendo desde 2016 países como Índia, Nepal, Etiópia e Quênia, mas encontrando seu foco mais profundo no Brasil e suas culturas originárias. Com uma formação inicial influenciada pela mãe fotógrafa, Débora desenvolve um olhar que busca traduzir alegria, leveza e dignidade mesmo em contextos de complexidade social, sempre com respeito às pessoas e suas verdades.
Sua imagem “Kuikuro“, finalista na categoria Imagem Destacada do Prêmio Portfólio FotoDoc 2025, é o cumprimento de uma promessa de infância. Realizada na Aldeia Ipatsé Kuikuro no Alto Xingu em 2024, a fotografia captura Atatüxu – bisneto do histórico Narru Kuikuro, primeiro indígena da região a aprender português – em um momento de pura liberdade nas lagoas que cercam a comunidade. Mais do que um registro documental, a imagem sintetiza uma busca pessoal por uma “infância sonhada”: livre, presente, intensa e profundamente conectada à natureza, longe das telas e da ansiedade do mundo contemporâneo. O trabalho, que integra um ensaio mais amplo sobre os povos originários, reflete seu desejo de mostrar cenas intimistas que fujam das caricaturas, revelando instead a potência vital que encontrou nas crianças Kuikuro – “gente de verdade que vive o presente”, como define a fotógrafa.
Conheça mais sobre esta jornada de reconexão com o Xingu e os projetos que unem sertão, Amazônia e exposições internacionais na entrevista que segue.



Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Tenho 51 anos, vivo e trabalho em Curitiba, Paraná, mas fotografo pelo mundo.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
A fotografia entrou na minha vida desde muito nova, por ter uma mãe fotógrafa e professora de fotografia. Aprendi muito com ela, que tem uma didática incrível. Somos uma família de fotógrafas e fotógrafos apaixonados.
Sou advogada, e acabei deixando a paixão da fotografia de lado, mas por um tempo. Com o nascimento de minhas filhas e os primeiros contatos com o mundo digital, retomei estudos, livros e cursos.
Sempre fui uma criança sonhadora; livros, filmes e até trabalhos de escola me faziam voar para mundos imaginários, que me libertavam de todo excesso de responsabilidade que fui acumulando na vida. Demorei a tomar coragem de realmente voar, mas depois que comecei, não há o que me faça parar e a fotografia virou tradução de toda liberdade que vejo, sinto e aprendo quando estou viajando.
Sou uma fotógrafa viajante, viajo nas histórias, nos lugares e nas pessoas. Nas viagens encontrei pessoas incríveis, culturas, diversidade, vida e liberdade. As diferenças que marcam e semelhanças que unem as pessoas ao redor da Terra me encantam.
Tenho como mote mostrar a alegria, a leveza, a simplicidade, a comunhão com a natureza, tudo com muita dignidade e respeito às pessoas, suas casas, seu trabalho, sua família, suas verdades. O que às vezes pode ser difícil, considerando a dureza dos nossos dias, a violência, a pobreza e tantos problemas individuais e coletivos, que só crescem.
Desde 2016 tenho viajado pelo mundo, fotografando vidas. Estive na Índia, Nepal, Butão, Vietnã, Laos, Camboja, Sri Lanka, Quênia, Etiópia, vários lugares da Europa, EUA e principalmente aqui no Brasil, onde estou querendo focar o meu trabalho nos próximos anos. E talvez na África, Ásia… onde a vida me chamar.
Hoje tenho uma consciência mais precisa de um trabalho consistente na fotografia. A participação em grupos de estudo, cursos e vivências tem me dado uma resposta certeira sobre o trabalho que já tenho e o que ainda pretendo desenvolver.
Por anos saí fotografando sem rumo, fugindo de algumas histórias pessoais doídas, e os caminhos que percorri sempre foram de tocante beleza. A fotografia me encontrou perdida e me revelou encontros de alma e luz. Agora consigo me perder sabendo qual é o caminho.


Canudos, Bahia, 2021
Casa de Vó Izabel é hoje um museu, guardado com total zelo pelo neto Paulo Regis, dentro o Parque Nacional de Canudos.
– Imagem do Portfólio Memórias do Sertão, de Débora Ling, selecionado no Prêmio Portfólio FotoDoc 2025

Canudos, Bahia, 2021
Casa de Vó Izabel é hoje um museu, guardado com total zelo pelo neto Paulo Regis, dentro o Parque Nacional de Canudos. – Imagem do Portfólio Memórias do Sertão, de Débora Ling, selecionado no Prêmio Portfólio FotoDoc 2025
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2025. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Quando eu era criança, acho que na 5ª ou 6ª série, apresentamos um trabalho na escola sobre a Amazônia. Nosso trabalho era espetacular e foi premiado na Feira Municipal de Ciências, algo super incrível na época. Minha parte era sobre os povos indígenas. Então, cheia de curiosidade, na década de 1980, devorei todas as revistas Geográfica Universal da coleção da minha mãe, livros e enciclopédias, entrevistei um professor que era Doutor em antropologia, aprendi tudo sobre o Kuarup e jurei que um dia eu iria conhecer o Xingu, me mudar pra lá e escrever um livro.
Levei quase 40 anos, mas fui! Comecei pelo Baixo Xingu, com os Xavantes – outro povo que me fascinava, e somente em 2024 conquistei as terras desbravadas pelos Irmãos Villas-Bôas. Fomos recebidos pelos Kuikuro, na Aldeia Ipatsé Kuikuro, povo do Alto Xingu. Assisti parte do Kuarup e todo o ritual Tawarawana (Festa dos Peixes). Fiquei hospedada na casa do Cacique Afukaka Kuikuro, retratado em “Gênesis”, de Sebastião Salgado.
Ali pudemos conviver, ouvir histórias e mais histórias, participar de rituais, comer muito peixe e biju, e tomar muitos banhos na grande lagoa que se forma ao lado da aldeia.
É lá que as crianças brincam, aprendem, vivem. Vivem livres e cheias de energia e curiosidade. Essa infância, que cheira a saudade do que nunca vivi, é que quero retratar. Tocada pelas palavras de Ailton Krenak, em “Futuro Ancestral”, vi aqueles meninos vivendo a liberdade, intensos, presentes, perto dos bichos e da natureza, com todos os seus desafios e descobertas, “nas suas casas, que é dentro dos rios”.
A foto escolhida como finalista é parte de um ensaio que estou cuidadosamente editando, mas traduz todo o sentido desse trabalho, uma busca à infância livre, presente e intensa.
O menino fotografado é Atatüxu, filho de Kamiha Iracema e Yamalui Narru, irmão de Twona, neto do cacique Afukaka e bisneto de Narru Kuikuro, o primeiro indígena do Alto Xingu a aprender o português e cuja história foi retratada no livro escrito pelo neto, o antropólogo Yamalui.
Neste dia fomos à lagoa, que fica há mais ou menos 1 km da aldeia, por uma estrada coberta de floresta. Nossa companhia, Atatüxu e outro menino mais novo, que nem consegui entender o nome. Eles andavam pelo caminho nos mostrando plantas, bichos, pegadas, correndo, pulando, contando coisas sem parar, mas chegando na lagoa nos maravilharam com a energia potente da infância e profundos ensinamentos sobre liberdade.
Gente de verdade, que vive diferente, que quer paz, saúde e alegria, como todos nós. Que não se importa com a ansiedade das horas, vive o presente.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Tenho trabalhado em um projeto pessoal, com pretensão de transformar em exposição e livro, inclusive colocá-lo em editais. O trabalho é exatamente relacionado à fotografia finalista do FotoDoc, retratando os povos originários, mas de forma menos “caricata”, trazendo cenas mais intimistas, principalmente mostrando uma infância sonhada, livre, perto da natureza, longe das telas. Sob orientação de Alexandre Sequeira e Paulalyn Carvalho, em curso e grupo de discussão “Fotografia Documental Profissional”, pelo Viva Rua.
No mesmo grupo, com orientação de Carmen Negrão e edição de PaulaLyn Carvalho, será publicado um livro coletivo, que, de forma diferente irá tratar dos costumes ancestrais do povo Tupi-Guarani.
Em outra esfera, com orientação e grupo de estudos de Éder Chiodetto, estou estreando uma visão mais conceitual do meu trabalho, com elementos da Amazônia, sem necessariamente a inclusão da figura humana, mas trazendo o que consigo traduzir de magia, mistério, ciclos. Algo ainda embrionário, mas que tem mexido muito com minha cabeça.
Fui convidada para participar da BELA – Bienal Europeia e Latino-Americana de Arte Contemporânea, com exposições começando agora dia 16/08 na Fábrica Bhering, no Rio, e com exposições ainda neste ano em Osaka, Japão e em Helsinque e Varkaus, na Finlândia, com um trabalho também do Xingu e curadoria de Edson Cardoso.
Além disso tudo, desde o início de 2024, tenho revisitado muitas coisas que não levei adiante, e tenho muito material. Acho fundamental rever, ressignificar.
Ainda pretendo terminar os projetos iniciados, mas meu foco será, além dos povos indígenas, o sertão, para onde pretendo voltar para terminar uma série que percorre os caminhos de Euclides da Cunha, na guerra de Canudos, onde escreveu “Os Sertões”.


Uauá, Bahia, 2021 – Imagem do Portfólio Memórias do Sertão, de Débora Ling, selecionado no Prêmio Portfólio FotoDoc 2025
