Conta a história oficial que os povos originários do Brasil foram dizimados com a chegada dos colonizadores europeus. Essa é uma meia verdade. Embora tenham sofrido de fato um genocídio, os indígenas resistiram e ainda resistem até hoje. Suas tradições estão vivas e profundamente entranhadas na cultura popular brasileira.
Vivendo em Parnaíba, no litoral do Piauí, Gelson Catatau se dedica a resgatar parte dessa história abafada. No Portfólio “Peixes Racionais”, um dos finalistas do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024, ele registra em profundidade aspectos da cultura local, das populações ribeirinhas do Delta da Parnaíba, que vivem da pesca artesanal. Eles são, em grande medida, descendentes dos povos indígenas Tremembé, que habitam a região há séculos e são conhecidos como “peixes racionais”, por serem hábeis nadadores e destros na pesca. O trabalho de Gelson Catatau, que tem formação em Engenharia da Pesca, chama a atenção pela qualidade no tratamento das cores e pela intimidade com seus retratados e sua atividade.
Na entrevista a seguir ele conta os detalhes de seu projeto e os planos para o futuro. Conheça.
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Uma mão segura anzóis adaptados para a pesca tradicional do camurupim, no fundo azul o desfoque de uma praia. A mão com garras afiadas simboliza a resistência da pesca artesanal no Delta do Parnaíba, sobretudo do Camurupim, peixe conhecido por ser difícil de pescar e ter alto valor comercial. Imagem do Portfólio Peixes Racionais de Gelson Catatau, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024
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Em uma foto de tons azulados, vê-se de baixo para cima um homem, pescador, em seu rancho, segurando um arpão. Este instrumento é essencial na pesca artesanal do camurupim, uma técnica que envolve um intenso embate entre o homem e o peixe. Primeiro, o peixe é capturado pelo anzol; em seguida, o pescador espera pacientemente até que o peixe se canse. Quando o peixe se aproxima do barco, o arpoador acerta o golpe final, trazendo-o para dentro da canoa. Esta cena captura a habilidade e a perseverança dos pescadores do Delta do Parnaíba. Imagem do Portfólio Peixes Racionais de Gelson Catatau, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Tenho 38 anos. Moro e trabalho em Parnaíba, litoral do Piaui. Divido a vida com minha companheira de vida e trabalho Ster e temos um filho de 1 ano que se chama Devir. Esse pequeno litoral do Brasil é um lugar único no mundo porque temos um Delta, o único das Américas que deságua em mar aberto e o terceiro maior do mundo, uma região de paisagens incríveis e de grande biodiversidade.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Comecei a me interessar pela fotografia no final do meu curso de graduação em Engenharia de Pesca na Universidade Federal Delta do Parnaíba, em 2015, já imerso nas comunidades ribeirinhas do Delta. Após uma temporada em Portugal, ainda em 2015, comprei minha primeira câmera fotográfica e estudei fotografia na Escola Mil Cores em Lisboa.
Em 2016, ao retornar, conectei-me com fotógrafos piauienses e consegui uma oportunidade de trabalhar com fotojornalismo em Teresina. Essa fase foi um grande aprendizado, pois aprendi a viver de fotografia e conheci vários lugares do meu estado, do Sertão ao Mar.
Em 2017, voltei para Parnaíba, minha cidade natal, com a vontade de rever a minha região através das lentes da minha câmera. Fotografei muita rua e cotidiano, sentindo-me conectado ao Zen no ato de fotografar. Nesse ano, encontrei minha companheira de vida e projetos, Ster, que atua como curadora e ajuda a dar narrativa e profundidade aos meus trabalhos. Juntos, nos dedicamos a projetos pela conservação e valorização da cultura natural e humana do Delta do Parnaíba.
Em 2018, tive a oportunidade de fazer minhas primeiras exposições, uma coletiva e uma individual, que refletiam meu momento de conexão com o presente através da fotografia. Minha fotografia evoluiu de um estilo espontâneo para algo mais pensado e retratado, à medida que comecei a refletir mais sobre a região onde vivo.
Em 2020, durante um breve retorno das atividades em meio à pandemia, viajei pelo Delta do Parnaíba para fotografar para o Museu do Mar do Delta do Parnaíba. Nesse projeto, percebi a ameaça às tradições e ao modo de vida das comunidades ribeirinhas devido à especulação imobiliária e ao avanço das usinas eólicas.
Em 2021, em parceria com o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), realizei o documentário “Ventos do Delta”, alertando sobre os impactos das usinas eólicas na Ilha Grande, onde fica a Praia Pedra do Sal. Em 2023, fui convidado a fotografar para o Museu dos Povos Indígenas do Piauí, investigando a cultura indígena do estado e entendendo meu papel como herdeiro dessas tradições. Este trabalho, além de documentar, é uma forma de preservar a ancestralidade dos povos originários do Piauí.
Toda essa trajetória está resumida no portfólio “Peixes Racionais”, que fala sobre a visão de que os povos do Delta do Parnaíba precisam ser estudados e percebidos como tal. Como um povo único, que é descendente dos Tremembés, que vive, trabalha, guarda e protege todo esse ecossistema. Essa visão é como me coloco e percebo a minha gente, como me percebo como fotógrafo e meu papel neste lugar, pela defesa do território, por uma releitura decolonial de nossa história e pela celebração de nossas tradições.
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Em uma parte mais aberta do mangue, as raízes e troncos caídos formam uma moldura circular ao redor de um catador de caranguejo que está no centro da foto. Ele usa chapéu, está sem camisa, tem a pele avermelhada e veste um calção vermelho. Ao fundo, o verde exuberante do mangue destaca o ambiente natural. Esta imagem sugere a importância de recentralizar o mangue como ponto de partida para discussões e visões de mundo, promovendo a descentralização dos discursos identitários. Ao afirmar que ‘o centro é o mangue’, enfatizamos seu papel vital no ecossistema e na vida das comunidades tradicionais. Imagem do Portfólio Peixes Racionais de Gelson Catatau, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024.
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Em uma foto de tons azulados, um caranguejo sujo de lama está amarrado a uma corda de caranguejo. A cata do caranguejo é uma atividade frequentemente discriminada, mas que requer muita habilidade e conhecimentos ancestrais. Cada caranguejo capturado é fruto de uma busca individual em um habitat que não é feito para os homens. Esta imagem destaca a complexidade e o respeito envolvidos na prática da captura, refletindo a profunda conexão entre os catadores e o mangue. Imagem do Portfólio Peixes Racionais de Gelson Catatau, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Como expliquei na pergunta anterior, “Peixes Racionais” é fruto da minha trajetória, na qual fui descobrindo e desvelando questões emaranhadas na nossa história e nossa percepção de identidade. Ao reunir os retratos que realizei durante esses anos, foi impossível não notar a forte presença de traços indígenas na maioria deles. Essa percepção vai contra a historiografia tradicional do Piauí, que diz que o povo indígena no estado foi completamente dizimado, fato refutado por pesquisadores recentes. Essa ideia de genocídio indígena nos foi ensinada na escola, mas é importante perceber que a história indígena não se resume a massacres e dizimações. Embora a violência sofrida não possa ser negada, devemos reconhecer a resiliência, adaptação e resistência desses povos.
“Peixes Racionais” é como eram conhecidos os Tremembés que habitavam essa região há séculos, por serem hábeis nadadores e destros na pesca. Os Tremembés originários do Delta não foram dizimados, adaptaram-se e tornaram-se ribeirinhos. É isso que tento mostrar com este portfólio.
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Na imagem, o corpo do Mestre Griô Seu Julinho está imerso nas águas azuladas do Rio Parnaíba, com apenas o rosto emergindo, exibindo um sorriso aberto. O fundo esverdeado do mangue contrasta com a serenidade das águas. Seu Julinho, catador de caranguejo, ri ao final de mais uma jornada de captura. Este momento captura a simbiose entre o homem e o rio, onde as águas oferecem vida e sustento, e o homem, em troca, cuida e respeita esse ecossistema vital. Imagem do Portfólio Peixes Racionais de Gelson Catatau, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024.
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Na imagem, dois pescadores acompanham seus dois filhos enquanto saem para buscar os manzuás deixados no mar para a pesca das lagostas. Neste momento, é visível a transmissão do saber ancestral da pesca, que como todo conhecimento tradicional, é passado de pais para filhos. Esta cena não apenas retrata uma atividade cotidiana, mas também ressalta a importância da continuidade cultural e da conexão entre gerações nas comunidades do Delta do Parnaíba. Imagem do Portfílo Peixes Racionais de Gelson Catatau, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
O portfólio “Peixes Racionais” revelou para mim um recomeço, um novo momento em que me compreendo como um fotógrafo que estuda e faz parte dessa questão. Foi muito importante participar dessa seleção como finalista, um reconhecimento de um trabalho realizado com muitos desafios e dificuldades de ser fotógrafo no Piauí, abordando um tema que desagrada políticos, grandes empresários e famílias influentes na região.
Hoje, meu trabalho está mergulhado nas águas do Delta, que ora é rio, ora é mar. Esta região fascinante, embora única, está fragmentada entre três estados, tornando a união de seus povos em torno de questões comuns uma saga. Entre os desafios que enfrentamos estão o avanço desenfreado do turismo, a pesca predatória e a expansão das usinas eólicas, ameaçando tanto o bioma quanto a rica cultura local.
Estou dedicando meus esforços a um projeto audacioso: um livro de fotografia que mostre a natureza e a vida dos habitantes do Delta, um modo de vida ligado à natureza e ao sentimento profundo do que é o “Delta”, muito mais que um cartão postal. Nessa pesquisa visual, sei que a ancestralidade Tremembé mostrará sua presença nos rostos, nos costumes, e na cultura. O projeto é continuar a questionar, investigar e construir redes para desvelar essa parte da nossa história e identidade.
Acredito firmemente que a compreensão da identidade do nosso povo é fundamental para a união desses povos e juntos enfrentarmos os desafios que se impõe à biodiversidade do Delta do Parnaíba. Por isso, busco financiamento para transformar essa visão em realidade, criando um registro que capture a alma e a resistência desse lugar.
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Davi, envolto pelas águas do Rio Parnaíba, brinca enquanto marisca com sua família. Nesta região, o rio dita o ritmo da vida. As águas que fluem carregam significados diversos para as comunidades ribeirinhas do Delta do Parnaíba. É aqui que as crianças aprendem a nadar através de brincadeiras nas margens dos rios, dando-lhes autonomia para explorar os espaços comunitários e participar ativamente do mundo da pesca junto aos seus familiares. Esta imagem de Davi é uma representação vívida da simbiose entre as crianças e o rio, onde as águas não apenas proporcionam diversão, mas também ensinam lições essenciais de sobrevivência e conexão com a natureza. Imagem do Portfólio Peixes Racionais de Gelson Catatau, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024.
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Nesta cena, testemunhamos o fim de uma pescaria de camurupim, onde o peixe de grande valor comercial é cuidadosamente repartido. A parte próxima ao rabo, conhecida como chambiritó, é reservada para a família do pescador, enquanto a mandíbula é retirada como um troféu da pescaria. Os camurupim são peixes de grande porte, difíceis de serem pescados, e estão ameaçados por armadilhas predatórias, resultando em sobrepesca e impactando a tradição da pesca do camurupim. Esta imagem é um lembrete da valentia necessária para enfrentar os desafios da pesca tradicional e a importância de preservar as espécies e as tradições locais. Imagem do Portfólio Peixes Racionais de Gelson Catatau, finalista do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024.