O futebol feminino vem ganhando destaque a cada dia. Exemplo disso é o sucesso de público e de audiência na Copa do Mundo da França, que ocorreu entre os dias 7 de junho e 7 de julho de 2019. Também fora do campo, as mulheres estão ganhando espaço nas equipes de profissionais que cobrem os torneios de futebol, como Vanessa Carvalho, uma das pioneiras nos gramados e que esteve fotografando a seleção brasileira feminina nos estádios franceses (veja no final da página). A grande maioria ainda é masculina, mas a presença feminina vem aumentando, colocando abaixo preconceitos e o entendimento de que havia certa reserva de mercado para os homens à beira do campo.
“Não eram muitas, assim como hoje também não são, mas acho que, com a Copa do Mundo no Brasil e o fato de outras mulheres perceberem que mesmo em menor número havia brasileiras lá, entendeu-se que elas também poderiam fazer aquilo. De lá para cá esse número no Rio não subiu muito, mas em muitos outros Estados já se nota uma mudança na participação de mulheres fotografando nos campos de futebol”, relata Bruna Prado, 41 anos, carioca baseada no Rio de Janeiro (RJ) e que fez a cobertura da Copa América de 2019, no Brasil, como freelancer da agência Getty Images.
A fotojornalista Juliana Flister, também de 41 anos, atua em Belo Horizonte (MG) e confirma a informação da colega em relação à capital mineira. “Na época em que comecei a fotografar, não tinha nenhuma fotógrafa fazendo a cobertura. Hoje somos quatro mulheres e constantemente nos encontramos nos estádios, tanto no Mineirão como no Independência”, relata ela, que também trabalhou na Copa América para a Getty.
Para Ale Cabral, de 46 anos, que vive em São Paulo (SP), esse crescimento é um fato palpável, mas que ocorre de maneira lenta. Ela foi outra profissional a integrar a equipe da Getty durante a Copa América, que contou com seis homens e três mulheres; e foi coordenada por uma mulher, Alessandra del Bene.
Abaixo ao preconceito
Existe um preconceito de que o futebol, por ser um esporte de muito contato físico, não é coisa para mulheres. Na cobertura dos jogos de futebol, esse preconceito ainda reverbera. “Muitas vezes somos questionadas sobre trabalhar nesse segmento, que exige carregar muito peso e tem uma rotina de esforço contínuo. O conceito de sexo frágil sempre aparece como um argumento quando se abre esse debate. Mas isso cai por terra, porque nós, mulheres, no dia a dia, damos conta de tantas coisas, como família, filhos, jornadas duplas, na casa e no trabalho. É necessário haver igualdade, porque se for por capacidade nós inclusive superamos os homens nas tantas coisas que damos conta de fazer diariamente”, observa Bruna Prado.
O surgimento de colegas do sexo feminino nas coberturas de futebol chegou a causar certa desconfiança velada em fotojornalistas homens, segundo relata Juliana Flister. Ela ressalta, no entanto, que todos os casos de preconceito, assédio e até de xingamentos de cunho sexual pelos quais passou partiram da torcida. “Acredito que o desrespeito por parte do torcedor é o mais evidente. O futebol especialmente mexe muito com a paixão da torcida”, justifica.
Ale Cabral conta que a reincidência de xingamentos e insultos da parte de torcedores, principalmente quando o time de coração está perdendo, acabou levando a desenvolver uma técnica que ajuda inclusive na concentração. “Comecei a ouvir os jogos no rádio com fone e até me acostumei, ajuda muito no trabalho”, explica.
Apesar da aura que envolve os jogadores famosos, a cobertura do futebol é uma tarefa árdua e completamente desprovida de glamour, conta Nayra Halm, 37 anos, carioca que vive no Rio e realizou a cobertura da Copa América para a agência FotoArena. “É preciso carregar equipamento, banco, monopé, seguir as regras das competições. Há jogos debaixo de sol de 40 graus, há jogos debaixo de chuva pesada. Tem a concorrência e tem o fator sorte”, enumera.
O mercado de fotojornalismo tem passado por um momento difícil nos anos recentes, com enxugamento de redações, mas o trabalho com a cobertura de futebol vem abrindo outras possibilidades. “Há fotógrafos trabalhando para os clubes, para jogadores que querem ter seu material de forma diferenciada e para o marketing dos próprios campeonatos. Existem hoje outros nichos que podem ser explorados”, explica Bruna Prado. Ela ressalta que o fato de a maioria dos freelancers hoje atuar como pessoa jurídica exige uma cabeça mais voltada ao empreendedorismo.
Importância do equipamento
Uma peculiaridade da cobertura de esportes em geral e do futebol em particular é a necessidade de um bom equipamento. Como os fotojornalistas ficam na lateral do campo, distantes da ação, é absolutamente necessário contar com uma superteleobjetiva, de preferência bastante luminosa, pois as jogadas ocorrem de maneira muito rápida e exigem altas velocidades de obturação. Em geral, vai-
-se a campo munido de duas câmeras, uma com lente tele e outra com uma lente que cobre distâncias focais de grande angular para fotografar comemorações e lances que ocorrem nas beiradas do gramado.
O uso de um monopé é absolutamente essencial para garantir estabilidade quando se fotografa com uma supertele. A capacidade de disparo contínuo da câmera é outro aspecto a se observar, já que o recurso é muito utilizado para a cobertura de esportes, permitindo escolher a melhor imagem em uma série de opções que mostram o desdobramento de um lance. A agilidade também é exigida do profissional que atua na área, aliada à concentração, pois tudo é muito rápido e, como diz um batido e verdadeiro ditado, o futebol é uma caixinha de surpresas e quase tudo pode acontecer a qualquer instante dentro das quatro linhas.
Ale Cabral dá algumas dicas preciosas para quem deseja se aventurar nesse campo. “Investir em equipamento bom é importante, mas comece com o que tem. É preciso fazer muitos treinos, ter paciência, estar informado, conhecer o nome dos jogadores e as regras do jogo, chegar cedo, tentar desenvolver um estilo que o diferencie dos outros, e tem de gostar, estar disposto a trabalhar muito e ganhar pouco”, ensina.
Com o tempo e a prática, é possível desenvolver certo dom premonitório, a capacidade de antecipar a ação em uma jogada. Mas existe também o risco de se acomodar em uma zona de conforto. Por isso é importante buscar uma linguagem própria e, uma vez dominadas as bases técnicas para fazer um bom trabalho, partir para experimentações que possam resultar em um diferencial. Buscar desenvolver histórias relacionadas à cultura do futebol, para além da ação em campo, é outra forma de se destacar.
Do luxo ao lixo
O futebol é um esporte marcado pela desigualdade. Enquanto algumas estrelas ganham rios de dinheiro, a grande maioria dos profissionais sobrevive com baixos salários e dificuldades de todos os tipos. O mesmo vale para os torneios de futebol. Essa opinião é unanimidade entre as fotógrafas entrevistadas, que puderam constatar a diferença ao comparar o padrão de organização da Copa América com as condições encontradas em torneios locais.
“A organização foi excelente”, relata Nayra Halm, “diferente da cruel realidade que passamos no dia a dia dos campeonatos locais. Tínhamos internet cabeada em campo, por exemplo, o que nos possibilitava o envio de forma justa em relação aos demais veículos. Isso não ocorre normalmente. Em geral, dependemos de nossa própria conexão para enviar uma foto. Ah, e água para beber, já que não há nem bebedouros nos grandes estádios do Rio para a imprensa”.
Ale Cabral recorda de um desconforto, causado por questões de segurança. “Teve jogos em que não se podia entrar com água, e nos fizeram jogar fora, a comida também. Nesses casos tivemos de comer aquela comida cara e ruim de estádio. A internet também era superlenta, mesmo usando os cabos de rede”, conta ela, que cobriu todos os jogos que ocorreram em Porto Alegre (RS) e São Paulo (SP).
Em um ambiente tão competitivo e dinâmico, o único risco que mulheres e homens não correm é de morrer de tédio. “O legal do futebol e de muitos esportes é que nenhum jogo é igual ao outro”, comenta Ale Cabral.
Sérgio Moraes, chefe de Fotografia na Agência Reuters no Brasil, diz que na agência em que trabalha existe uma preocupação grande em ter cada vez mais mulheres nas principais coberturas. “Nos recentes Jogos Pan-Americano do Peru, 50% da nossa equipe é de mulheres”, informa. Na Copa América, a Reuters teve a brasileira Amanda Perobelli, a peruana Pilar Olivares e a colombiana Luísa Gonzalez. A Associated Press (AP) contou com duas fotojornalistas, a argentina Natacha Pisarenko e a peruana Silvia Izquierdo.
Brasileira cobriu a Copa do Mundo Feminina
Exatamente no mesmo período em que se jogava a Copa América no Brasil, ocorria a Copa do Mundo de Futebol Feminino na França. A paulistana Vanessa Carvalho, 34 anos, fotojornalista independente em Nova York, estava lá. Foi a terceira edição do torneio que ela cobriu, somando-se as copas realizadas na Alemanha, em 2011, e no Canadá, em 2015. Vanessa também cobriu a Copa do Mundo do Brasil, em 2014. Ela nota um aumento no número de mulheres presentes nas coberturas do torneio feminino de 2011 para 2019.
“Fotografo esporte já faz alguns anos. No início, quase não encontrava mulheres. Na Copa do Mundo do Brasil, por exemplo, havia uma média de cinco mulheres por partida. Nas três edições da Copa do Mundo de Futebol Feminino que fotografei, notei um crescimento muito grande de mulheres cobrindo o evento. Nos jogos da Copa da França, encontrei uma média de 15 a 20 fotógrafas em campo, de várias nacionalidades”, conta Vanessa.
Ela fez a cobertura para a agência Brazil Photo Press, foi sozinha, e suas imagens foram distribuídas para vários veículos de comunicação, no Brasil e em outros países. Durante o torneio, realizado na passagem da primavera para o verão europeu, de 7 de junho a 7 de julho de 2019, a temperatura subiu de uma média de 9 graus nas primeiras partidas para um calor de até 45 graus nas últimas. Vanessa conta que havia programado fazer os deslocamentos de trem, mas as passagens estavam muito caras durante o torneio, o que fez com que tivesse de alugar um carro. Além de fotografar, cuidou de toda a logística, inclusive do deslocamento, preocupação pela qual não passam os profissionais de grandes agências.
Apesar dos perrengues, Vanessa Carvalho se sentiu recompensada pela boa repercussão que a Copa do Mundo Feminina teve no Brasil. “Fiquei muito surpresa ao ver que a audiência da TV nos jogos do feminino foi mais alta do que nos jogos do masculino em algumas regiões do Brasil”, revela.