No dia 27 de janeiro de 2013, o Brasil viveu um dos incêndios mais catastróficos de sua história, ocorrido na boate Kiss, em Santa Maria (RS). Iniciadas por conta de um show pirotécnico, as chamas tomaram conta rapidamente da casa, que estava superlotada. O resultado foi 242 pessoas mortas e 636 feridas, a grande maioria de jovens. O episódio é até hoje uma ferida aberta para o município com cerca de 296 mil habitantes.
Ciente da missão social da fotografia de registrar para que as coisas não caiam no esquecimento, Ricardo Ravanello decidiu dedicar um projeto de documentação sobre o episódio. Ele entendeu que deveria tratar o tema de maneira delicada e acolhedora, por isso descartou o uso do digital e resolveu pesquisar a técnica de colódio úmido, um processo fotográfico utilizado ao longo do século XIX. Depois de dois anos de estudos e testes, deu início ao projeto “Retratos da tragédia”, acolhendo, retratando, ouvindo e registrando as histórias de pessoas cujas vidas foram marcadas.
Uma seleção de 15 retratos está entre os finalistas do Prêmio Portfólio FotoDoc 2024 na categoria Portfólio. Entenda mais sobre o projeto e seu autor na entrevista que segue.
Quantos anos tem? Onde vive e trabalha atualmente?
Tenho 46 anos, moro em Santa Maria, RS e sou professor de fotografia no curso de Desenho Industrial da Universidade Federal de Santa Maria.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal na fotografia. Quando começou a fotografar e por que? Qual papel tem a fotografia em sua vida?
Comecei a fotografar quando cursava comunicação social, logo me identifiquei com a atividade e passei a fazer freelas na própria universidade. Depois de me formar a fotografia ficou em segundo plano, como uma atividade paralela aos meus trabalhos, até que gradualmente comecei a me reaproximar a partir de disciplinas que ministrava em faculdades. Durante o meu doutorado de 2014-2018, a fotografia se tornou central na minha vida, não só como atividade profissional, mas como busca pessoal nos campos da estética e da narrativa.
Conte um pouco sobre seu trabalho finalista do PPF 2024. Quando e onde foi realizado? Qual a proposta? De que maneira e em que medida ele se encaixa em sua produção fotográfica?
Desde que a tragédia aconteceu eu sabia que como fotógrafo deveria dar minha contribuição, sou natural de Santa Maria e contar essa história de um jeito potente também se tornou uma obrigação, um pacto que fiz comigo mesmo. A fotografia tem essa missão social de registrar para que as coisas não caiam no esquecimento a longo prazo, mas por um bom tempo eu não consegui me aproximar por não saber como tratar o assunto. Além de toda dor que os familiares passaram pelo crime em si, eles também tiveram suas imagens e histórias exploradas por muita gente inescrupulosa.
Eu sempre entendi que esse era um trabalho que não poderia ser feito com pressa nem com a vulgaridade do digital, era preciso acolher antes de fotografar. Quando comecei a estudar a técnica do colódio úmido, logo que entendi o seu histórico de criação, os materiais envolvidos e a delicadeza do seu processo, eu tive clareza de que esse era o caminho. Depois disso, levei dois anos pesquisando, construindo e testando fórmulas para estabilizar o processo e conseguir fotografar com placa úmida.
Então, antes de fotografar eu mostro todo o processo, conto a história dele, mostro os materiais e faço a revelação da primeira imagem na frente do meu convidado. Nesse momento, sob a luz vermelha do laboratório, a partir da primeira imagem que a pessoa vê brotando na placa de vidro após cada lambida do revelador, a pessoa também se revela, a partir desse momento há uma abertura e em geral ela me conta a sua história, o que passou, o que ainda passa, a saudade, o desespero, as crises e as retomadas. A revelação da primeira placa causa sempre um espanto que se transforma em catarse. Depois disso, voltamos para uma segunda imagem, e aí sim me é permitido retratar a tragédia.
O trabalho se encaixa na minha produção principalmente pelo viés da artesania e da química. Eu costumo dividir a história da fotografia, grosso modo, em três momentos…da fundação até o filme fotográfico, ali pela virada do século e depois com a entrada do sistema digital. Particularmente eu me interesso por pesquisar e produzir a partir desses processos anteriores ao filme fotográfico. De 1830 até 1880 aproximadamente, temos uma enormidade de processos químicos e variações de suporte e técnicas, depois tudo praticamente some com o filme fotográfico, que depois é substituído pelo digital.
Além disso, também gosto muito de produzir no sistema digital, que acabou com a necessidade da existência das coisas no mundo concreto. Com o digital tudo pode ser construído, sem ter existido. Isso traz um potencial enorme para o meio e também um risco enorme de descrédito. Então esses dois ecossistemas da fotografia, o primeiro onde entramos no laboratório e a partir da química fazemos brotar imagens, e o último, onde interagimos com algoritmos para construir imagens, são os meus campos de atuação.
Em quais projetos trabalha atualmente? Quais seus planos para o futuro próximo em termos de produção fotográfica?
Meu último trabalho se chama Biodesign, onde tento seguir a trilha deixada por vários fotógrafos do passado na representação expressiva da flora. A flora sempre foi um objeto de atenção da fotografia, e em cada época ela foi retratada de acordo com uma tecnologia e visão de mundo, de Anna Atkins, passando por Karl Blossfeldt e depois por último com Joan Fontcuberta na série Herbarium, as imagens produzidas falam muito além de uma documentação botânica, tratam de uma visão do que é a fotografia como sistema significante. É nessa discussão que eu tento entrar com biodesign.
Por fim, sobre Retratos da tragédia, o plano é transformar as imagens e as histórias coletadas em um livro. Sigo procurando editoras interessadas.
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