Nasci numa cidade cercada de morros, que alguns dizem ser a cratera de um vulcão. No mapa do estado do Rio Grande do Sul (Brasil) ela fica no meio, um pouco à esquerda, por isso ganhou o apelido carinhoso de cidade coração do Rio Grande. Antes da colonização, tinha o nome indígena de Ibitory-Retan – Terra da Alegria. Viveram por aqui povos Minuano e Tapes. Santa Maria hoje é uma cidade universitária, quem vem para estudar chega cheio de sonhos, experienciando as dores e as delícias da primeira liberdade longe dos pais.
Numa manha de domingo cerca de onze anos atrás o coração do Rio Grande acordou em choque. De lá pra cá deixou de ser a Terra da Alegria. Nos tornamos a cidade da tragédia da Boate Kiss.
11 anos depois, o incêndio que matou 242 jovens na boate Kiss continua destruindo, seja pela incapacidade do sistema de justiça de dar uma resposta aos familiares, seja pela forma como a sociedade local tenta apagar a história, ou ainda, pela mutilação física e psicológica dos sobreviventes. Desastres nessa escala não são obras do acaso, são produzidos por uma sucessão de negligências e irregularidades. O caso da boate Kiss que poderia ter sido um farol para a sociedade, uma referência no combate à negligência gananciosa do lucro a qualquer preço, se torna uma caricatura, mais um entre tantos outros exemplos, onde a demora e os emaranhados da Justiça viram incentivo para o crime.
O projeto foi realizado com placa úmida de colódio, a técnica fotográfica do Colódio úmido parte da descoberta de um material explosivo em 1848, nomeado de algodão-pólvora, um tipo de nitrocelulose que queima de maneira instantânea. Um ano depois um pesquisador adapta esse material explosivo para fins medicinais ao dissolver em álcool e éter, cria uma substância aderente e gosmenta chamada de colódio, usado para tratar os ferimentos de guerra no campo de batalha. A mistura jogada sobre um ferimento, esteriliza e depois com a evaporação do álcool e do éter, fecha a ferida com uma fina película transparente e maleável. Em 1850, Frederick Scott Archer, dissolve no colódio sais fotográficos, que ficam em suspensão no líquido viscoso. Aplicando esse líquido sobre uma placa de vidro e depois mergulhando essa placa em uma solução de nitrato de prata, a prata se mistura aos sais formando os haletos de prata, tornando a película fotossensível. A placa então é levada até a câmera dentro de um chassi protegido da luz. Ao abrir o chassi, a luz projetada pela lente, produz uma reação nos sais de prata, que imediatamente devem ser revelados e fixados com o colódio ainda úmido. No processo de revelação e fixação a prata adquire um aspecto metálico e uma vez que a emulsão seca ela veda a prata em seu interior, podendo agora ser envernizada. Dessa forma, a fina película de nitrocelulose que contém a prata metaliza, fica prensada e protegida entre o vidro e o verniz. As fotografias em Colódio Úmido exigem uma quantidade enorme de luz, tornando cada imagem um desafio de imobilidade. Em geral, o tempo de exposição que o retratado precisa ficar imóvel várias de 3 a 15 segundos.
A partir da ciência, um artefato militar (algodão-pólvora) se transforma em tecnologia de cura (colódio) e depois, em meio de expressão para fixar a história, para que possamos aprender com ela. A textura do colódio se confunde com a pele queimada, as vezes temos a impressão que as imagens são formadas por uma densa fuligem negra, como ao final de um incêndio. Cada imagem é absolutamente única, não pode ser refeita de forma idêntica. Nesse projeto, exploramos a capacidade do colódio de fechar feridas, as imagens imortalizadas sobre o vidro, declaram que não iremos esquecer, que não podemos esquecer. Seguir em frente depende de assumirmos coletivamente essa divida com quem se foi e fazemos isso mantendo a memória viva. Nesses retratos estão algumas histórias que sintetizam o rastro de destruição de um incêndio que parece estar longe de ser apagado. São as outras tragédias que aconteceram depois da tragédia de 27 de janeiro de 2013.
Equipamento utilizado Câmera de grande formato (de madeira) restaurada e adaptada para placas úmidas de colódio.
Lente – Petzval 300mm F3.6 fabricada por volta de 1860
Ricardo Brisólla Ravanello
É fotógrafo e professor associado na Universidade Federal de Santa Maria. Tem graduação em Comunicação Social, mestrado em Ciências da Linguagem e doutorado em Ciências da Comunicação.
Os trabalhos autorais podem ser divididos em duas categorias. A primeira se refere as imagens que se aproximam mais de linguagens artísticas, onde apresenta uma leitura estético-criativa do mundo, das emoções e das subjetividades humanas. Em geral, essas imagens são produzidas com maiores intervenções, produzindo cenas que são estranhas à forma como se vê naturalmente o mundo.
Na segunda categoria, estão as imagens mais próximas de uma linguagem documental, onde apresenta suas fotografias de caráter crítico-narrativo, resultado e expressão da sua visão política sobre a realidade.