O fotógrafo Ricardo Beliel está lançando pela Editora Olhares o livro Memórias Sangradas: vida e morte nos tempos do cangaço, que reúne 125 imagens e conta a história de 43 personagens que tiveram suas vidas ligadas a esse fenômeno que dominou o interior de sete estados nordestinos entre os anos 1920 e 1940.
Para esse projeto, Beliel fez nove longas viagens ao Nordeste, entre 2007 e 2019, e os entrevistados, em sua grande maioria pessoas quase centenárias, são a memória viva da época do cangaço. O livro tem 320 páginas e custa R$ 129 – mais detalhes no site da Editora Olhares.
Beliel deu uma entrevista com exclusividade à Fotografe, contando um pouco sobre a gênese do livro e os desafios vividos por um fotógrafo documental no Brasil. Confira abaixo
Fotografe – O projeto que culminou com o lançamento do livro foi desenvolvido entre 2007 e 2019, gostaria de saber como se originou esse projeto fotográfico. Qual foi a proposta inicial? Como ele se desenvolveu e se aprimorou ao longo desses anos?
O interesse pelo tema do cangaço me acompanha desde a infância. Minha mãe era professora de geografia e história e meu pai jornalista. Nossa casa era quase um pequeno centro cultural, repleta de livros, incluindo alguns sobre o cangaço ou temas históricos nordestinos. Nos anos 1950 e 1960 o cinema nacional produziu diversos filmes em que a temática do cangaço foi a protagonista e íamos assisti-los com a mesma frequência com que nos deliciávamos com os livros de Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Rui Facó, Melchiades Rocha e tantos outros. E, claro, a música de Luiz Gonzaga, Marinês e Jackson do Pandeiro com seus baiões e xaxados foram uma trilha sonora potente para cultivar em mim um rico imaginário sobre a saga cangaceira.
Em 2007, já trabalhando no jornalismo há mais de 30 anos, fiz uma grande reportagem para uma revista europeia, Geo, sobre o rio São Francisco, das nascentes mineiras ao seu encontro com o mar, e passando pela região fronteiriça entre Pernambuco, Bahia, Alagoas e Sergipe soube que ainda havia personagens da época do cangaço vivos e isso me despertou o interesse para retornar àquelas cidades, Piranhas, Paulo Afonso, Canindé e Poço Redondo, e fazer outra matéria, sobre a memória social do cangaço. Assim que terminei a reportagem sobre o Velho Chico, regressei ao Rio, onde moro, editei as fotos e em dois dias estava de volta a Alagoas. Em Piranhas encontrei o sargento Elias Marques que havia participado do combate na grota de Angico, onde morreram Lampião, Maria Bonita e mais nove de seus cabras e um policial, e o coiteiro de cangaceiros Pedro de Tercila.
Entrando no interior da Bahia, conheci o irmão de Maria Bonita, Ozeias, na mesma Malhada da Caiçara onde viveram até a juventude, também o ex-cangaceiro Zé Gato, que vivia junto ao inóspito Raso da Catarina, refúgio preferido de Lampião na década de 30, e mais outros cinco personagens dessa época que me alimentaram com suas ótimas histórias. Publiquei essa matéria em diversas revistas, mas tive que me dedicar a outras reportagens e somente em 2015, com mais tempo para me dedicar a projetos de maior duração, voltei a esse universo tão particular, acompanhado de minha mulher, a jornalista e escritora Luciana Nabuco, com o desejo de transformar toda essa busca num livro. Realizamos juntos nove viagens, percorrendo onze mil quilômetros, pelos sertões profundos de sete estados (Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte) onde encontramos 43 personagens contemporâneos a esses tempos do cangaço e o projeto do livro foi ganhando forma e conteúdo. Todos, embora pouco conhecidos do público, eram personagens de nossa história e a eles dediquei um trecho do livro:
“Que prazer ouvir prosas e histórias de vidas desse sertaozão sem porteira. Que prazer há nas palavras, olhares e gestos daqueles que nos contam tantas histórias maravilhosas sem a arrogância dos que acreditam saber mais que os outros. Esses sabem, sabendo de forma simples, as coisas essenciais de suas vidas. O coração do sertão nordestino, em cujas artérias empoeiradas circula o sangue que mantém a memória viva desses tempos do cangaço, pulsa nas coisas simples, nas conversas de fim de tarde, nas histórias que se revelam por entre olhares e gestos de generosa sabedoria. O sertão é Deus e o Diabo, é a degola do Brasil”.
O conceito adotado para o ensaio fotográfico foi de criar um diálogo entre texto e imagens, aproximando os relatos dessas pessoas com suas fisionomias, expressões, hábitos, ambientes, espaços de moradias, religiosidade, etc. Poucas tem um caráter meramente ilustrativo e para a capa, contracapa e as duas imagens que acompanham o prefácio e posfácio é que usei velhas fotografias dos grupos de cangaceiros feitas por Benjamin Abrahão em 1936 misturando-as à terra do sertão criando uma simbiose telúrica e histórica com essas imagens.
Fotografe – Qual foi sua abordagem do ponto de vista fotográfico? Com qual equipamento costuma trabalhar, câmera e lente, e por quais motivos?
Minha prioridade foi manter a espontaneidade dos encontros. Preservar o privilégio do contato humano. O trabalho, para mim, é a consequência desses momentos. O uso de um equipamento fotográfico, ou de filmagem, logo em um primeiro relacionamento poderia fazer com que as pessoas nos recebessem de outra forma.
A proposta de fotografá-los deveria entrar em nossas conversas assim como as palavras e os gestos, espontânea e sincera. Em todos os momentos e para todos os personagens deixei sempre explícito que estava ali fazendo uma reportagem para um livro e as fotografias acabavam sendo a consequência desses encontros, plenos de boas conversas, cumplicidade e memórias compartilhadas, ricas de experiências de vidas. Por esse motivo procurei trabalhar com um equipamento mais reduzido, de forma discreta, sem parecer um invasor nesse mundo tão peculiar do sertão. Levava comigo uma câmera 6D Canon, com as lentes 24-105, 80-200 e macro 100mm, e um pequeno gravador de mão, pois todas as entrevistas foram gravadas para preservar informações detalhadas e, principalmente, a semântica sertaneja na hora de transcrevê-las para o computador.
Não foram apenas as pessoas que nos surpreenderam com suas histórias. Encontramos diversas fotografias belíssimas e raras feitas nos anos 1920 e 1930 por fotógrafos sertanejos, sendo que algumas inéditas em publicações. As cópias, que podem ser reconhecidas como vintages, com suas marcas do tempo, envelhecidas, são como seus proprietários, sobreviventes dessa época, com rugas em seus rostos que nos contam histórias de outras épocas. Sendo assim, também escrevi no livro quem foram esses fotógrafos, que equipamentos usaram e as circunstâncias em que fizeram tais fotos. Algumas hilárias, outras trágicas, mas sempre curiosas. São histórias de fotógrafos para quem ama fotografia.
Fotografe – No livro o texto tem grande importância. Gostaria que você contasse um pouco sobre o processo de criação do texto e de que maneira você insere os relatos de pessoas entrevistadas, o que remete ao universo da tradição oral. De que maneira o texto e as fotos se relacionam?
Ao longo de minha carreira de jornalista, como repórter fotográfico de 1976 a 1991 e, depois, produzindo, escrevendo e fotografando minhas próprias matérias de 1991 a 2014, sempre gostei de associar imagens e textos. Mesmo quando trabalhava em dupla com um repórter, essa combinação era, para mim, uma obsessão. Fotografias contam histórias. Textos atiçam a imaginação. Juntos, tocam o coração.
Nesse trabalho, as entrevistas foram ajudando a construir o roteiro de um grande romance histórico. As experiências pessoais, mesmo vividas em regiões tão distantes, acabavam se conectando umas às outras, ajudando a ordenar as narrativas sobre fatos ocorridos há mais de 80 anos. O livro é uma grande reportagem, em que conto na primeira pessoa a busca por esses personagens, situando-os no tempo presente, como em um diário de viagem, mas recheado de histórias reveladas por quem as viveu e muita contextualização histórica, fruto de pesquisas em livros e em documentos guardados em instituições de pesquisas.
Fotografe – Um dos grandes desafios da fotografia documental é conseguir financiar os projetos de longo prazo. Como você fez para viabilizar o desenvolvimento desse projeto? O financiamento proveniente do programa Rumos Itaú Cultural foi apenas para a criação do livro ou também foi usado na produção de fotos?
No início, em 2007, eu estava envolvido em uma grande reportagem comissionada pela revista européia Geo sobre o rio São Francisco e só depois é que eu e minha mulher, Luciana Nabuco, realizamos diversas viagens aos sertões de sete estados nordestinos com recursos próprios, misturados a outros projetos, mas já com o objetivo de realizar esse livro.
Durante esse tempo em que fizemos o trabalho de campo, eu não quis estar comprometido com prazos de entrega, limitações orçamentárias ou outras interferências no conteúdo e no processo de desenvolvimento do projeto. Ao final, e com o apoio da editora Olhares, é que o inscrevi no edital do Rumos Itaú Cultural que nos forneceu o valor equivalente para contratarmos a gráfica Ipsis para ter uma impressão de qualidade.
Fotografe – Outros profissionais tiveram participação decisiva na criação do livro? Se sim, quais e por qual motivo?
Essencialmente Luciana Nabuco. Minha parceira de vida que me acompanhou em seis viagens aos sertões, participando das entrevistas e pesquisas em instituições e bibliotecas, escrevendo o prefácio e posfácio, sugerindo títulos e me incentivando com sua presença a cada momento.
O editor Otávio Nazareth, da editora Olhares, e seu sócio e designer Daniel Brito, que deu o toque final no projeto gráfico, e, claro, vários pesquisadores da história do cangaço, que ajudaram com informações e indicações de personagens e lugares como Luiz Ruben Bonfim em Paulo Afonso, Robério Santos em Itabaiana, Marcos de Carmelita em Floresta, Adauto Silva em Alagoas, Ildebrando Gutemberg em Águas Belas, Aderbal Nogueira em Fortaleza, Rangel Alves da Costa em Poço Redondo e vários outros que se dedicam a pesquisar suas tradições e origens sertanejas.
Fotografe – Você desenvolveu um trabalho em profundidade na Amazônia ao longo de vários anos e documentou a invasão de terras indígenas em decorrência de políticas públicas herdadas da ditadura militar. Ainda fotografa naquela região? Tem projetos de livro ou exposição sobre a Amazônia? Como você tem visto os retrocessos recentes em relação à preservação da floresta?
Fiz muitos trabalhos na região amazônica, principalmente entre os anos 1980 e início dos 2000, quando trabalhava para a revista Manchete, para o jornal O Estado de São Paulo, para uma agência francesa, GLMR & Saga Images, e por último para o Greenpeace. Foi uma época muito marcante para mim, tanto pela diversidade de assuntos, quanto pela experiência humana por ter vivido tudo isso.
Realizei inúmeras reportagens nos garimpos de Serra Pelada e na região do rio Tapajós, na rodovia Transamazônica, nas cidades fantasmas de Fordlândia e Belterra, construídas pelos americanos para extrair borracha nos anos 1920 e 30, sobre a extração e comércio ilegal de madeira, o tráfico de cocaína entre Brasil, Colômbia e Peru, os conflitos com a guerrilha colombiana das Farcs, o desmatamento da floresta e a expansão dos cultivos de soja, a construção das hidrelétricas e as barragens no Xingu e em Balbina, a expedição da frente de contato com os índios isolados korubo no vale do Javari, etc.
Atualmente tenho me dedicado a editar uma seleção de fotos da Transamazônica, feitas nos anos 80 e 90, que desejo transformar em livro. Como brasileiro me sinto comprometido a debater essa situação, pois a tão polêmica “conquista da Amazônia” está a repetir o mesmo processo de séculos passados, como ocorreu no velho oeste norte-americano, mitificado pela cinematografia hollywoodiana, ou nas incursões dos bandeirantes paulistas matando índios nos sertões selvagens em busca de ouro, pedras preciosas e escravos.
Agora são levas de colonos gaúchos e paranaenses com suas práticas predatórias do bioma e das culturas regionais. Garimpos informais, genocídios de populações indígenas, poluição, desmatamento, violência urbana e rural, tráfico internacional de drogas, machismo exacerbado e uma sociedade sem lei, em que pistoleiros e matadores de aluguel valem mais do que os xerifes de plantão. O que podemos esperar em nossa tão valiosa Amazônia? Certamente que o cerne dessa crise não se trata apenas de desmatamento, mas de um projeto caótico de país. É impossível, ou no mínimo, irresponsável estar indiferente a essa realidade que afeta a todos nós.
Fotografe – Você teve uma longa carreira em redações e conseguiu desenvolver projetos autorais em paralelo ao dia a dia do fotojornalismo. Como você vê o cenário do fotojornalismo atualmente no Brasil, com o enxugamento das redações e a crise da mídia impressa?
O jornalismo está inserido na crise e nas transformações da contemporaneidade. Não dá para pensar e fazer jornalismo como há décadas passadas. O desafio que nós jornalistas enfrentamos não é apenas de fortalecer nossa credibilidade com boas informações, estamos também precisando recuperar a confiança na imprensa. Se por um lado convivemos cada vez mais com estratégias políticas, em todo o mundo, que se beneficiam de uma incapacidade crítica da população, jogando tanto a ciência como os fatos num balaio de incertezas, a imprensa também tem perdido sua aura de idoneidade e reconhecimento como o quarto poder da sociedade.
O mainstream das comunicações, nas mãos de grandes corporações comandadas por clãs familiares ou poderosos grupos econômicos, investindo cada vez mais num jornalismo de espetáculo, em que a informação é mera mercadoria, tem ajudado na perda da reputação dos meios jornalísticos mais tradicionais.
Esperar que os as grandes corporações midiáticas, tenham essa responsabilidade é um tanto fora da realidade. O lucro e os interesses das elites econômicas, em qualquer país, estão acima de posturas responsáveis, numa perspectiva holística, com a qualidade de vida de grande parte da população do planeta. Portanto, creio que essa competência recaia sobre os profissionais de imprensa.
Assim como no período ditatorial no Brasil, entre 1964 e 1985, enquanto as empresas jornalísticas faziam o jogo do poder, apoiando o regime, coube aos jornalistas exercerem um papel fundamental na redemocratização do país. Nós jornalistas temos uma função social, não podemos estar atrelados a interesses patronais e dos departamentos comerciais de empresas.
Acredito na capacidade individual de muitos jornalistas, assim como fico triste em ver, ao contrário desses, tantos outros subjugados a uma mediocridade ética, cultural e política, fazendo o jogo de um mercado perverso e, muitas vezes, desumano. O presente e o futuro ainda são um enigma. A expansão e desenvolvimento de novas tecnologias abrem portas e janelas para uma infinidade de novas mídias e nesse espaço surgem jovens talentos com trabalhos muito bons, assim como soluções para a difusão dessa produção.
Fotografe – Você tem acompanhado a fotografia documental brasileira? Quais trabalhos têm chamado sua atenção recentemente e por quais motivos?
Há muita gente boa produzindo coisas ótimas, mas vou destacar três que admiro, entre tantos outros. Luiz Baltar e Ratão Diniz, dois jovens fotógrafos formados na Escola de Fotógrafos Populares na favela da Maré. Ambos, com linguagens bem diferentes e muito pessoais, interpretam o cotidiano do Rio de Janeiro com olhares críticos, mas plenos de afeto por sua gente e espaços de vida. E também o Adenor Gondim, um baiano não tão jovem, que faz um trabalho magnífico documentando as festas e costumes populares de sua terra.
Há também o Fabio Teixeira, o Alex Ribeiro, a Valda Nogueira, a Ana Carolina Fernandes, o Guy Veloso, o Marcio Vasconcellos e muitos outros. A fotografia feita no Brasil é muito boa.
Fotografe – Quais dicas você daria a quem está começando e quer se especializar na fotografia documental?
Costumam dizer que a fotografia é a “janela da alma”, eu prefiro afirmar que é o “espelho da alma” porque reflete muito mais quem somos do que o que vemos. Ao fotografar dirigimos nosso olhar para o mundo que nos rodeia, assim como um dramaturgo ao escolher os personagens, o cenário, a ação dramática e o conceito do que queremos exprimir. Fotografia é um teatro parado no tempo.
Quanto mais autoral, melhor será seu trabalho. Quando eu estava fazendo esse livro, Memórias Sangradas, ao entrevistar um ex-cangaceiro, Zé Gato, perguntei sobre Lampião, ele me fuzilou com o olhar, por entre as rugas de seus noventa e dois anos, e sua admiração pelo chefe escapou em poucas palavras que cortaram seu profundo silêncio interior: “Era um homem que cabia um abismo dentro de si”. Acho que todos nós temos um abismo a ser descoberto dentro de nós, e a fotografia pode nos ajudar nessa busca.